quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019




Perigo iminente

Hilário Silva

Basílio chegara ao rancho, ao pôr do Sol. Comeu calmamente o guisado de palmito que Emerenciana lhe dera a jantar. Saboreou, em seguida, a pamonha bem-feita, e se dispôs a sair.
A esposa viajara na véspera, em visita a parentes. O calor abafava.
– Meren – disse à doce vovó que arranjava a cozinha –, deixe a casa aberta. Vou até ao curral, mas já volto.
E, passo lesto, chegou ao cercado, onde a vacaria procurava descanso, mastigando o repasto. Acariciou o bezerro da Lilinda, que nascera robusto, e melhorou a cama de palha. Dirigiu-se, depois, ao moinho e renovou a provisão de milho para o fubá.
Ar parado. A Lua apareceu inteirinha.
Basílio visitou, não longe, a casa de Jorge, companheiro do arado, e ambos, felizes da vida, se dirigiram ao mandiocal, espantando os tatus.
Dez da noite quando voltou. Emerenciana premia a máquina com o pé e costurava, fitando o pano com atenção pelos óculos fortes.
– Boa noite, vó – disse ele, depois de cerrar as janelas.
– Durma com Deus, meu filho.
Basílio beijou-lhe a mão encarquilhada e lhe enviou um sorriso bom.
No quarto, ouviu por alguns instantes as cigarras cantarem, perto, como se quisessem esquecer o vigor da canícula. Não tinha sono. Contudo, no outro dia, bem cedo, o milharal novo esperava por ele, acima do barrocão.
Sentia falta da esposa. Ainda assim, como na noite anterior, leria, a sós, o "momento espiritual".
Acendeu o candeeiro e sentou-se renteando a cama toda branquinha.
Orou por alguns instantes e, logo após, tomou "O Evangelho segundo o Espiritismo" e abriu ao acaso. Surgiu-lhe aos olhos, no capítulo vinte e oito, dedicado à oração, o item 34: "Num perigo iminente”. Tratava-se de uma prece para ocasião importante.
"Como é isso? Já orei..." - pensou. E, fechando as páginas, descerrou-as de novo. Queria material para refletir. Entretanto, o livro ofereceu-lhe a mesma passagem. Por quê?
Intrigado, voltou à consulta. O volume, porém, como se mantido por mãos invisíveis, deu-lhe a mesma resposta.
Basílio fez-se grave. Não poderia ser coincidência. Algum benfeitor espiritual, que os seus olhos de carne não conseguiam ver, certamente o prevenia.
Recordou um amigo que desencarnara, semanas antes, de um colapso cardíaco. Em rápidos segundos, considerou que a vida é patrimônio de Deus, que Deus a dá e retoma, quando lhe apraz. Agradeceu à Divina Bondade o benefício da consciência tranquila e, baixando o olhar para a folha, repetiu, solenemente: "Deus Todo-Poderoso e tu, meu anjo guardião, socorrei-me! Se tenho de sucumbir, que a Vontade de Deus se cumpra. Se devo ser salvo, que o restante da minha vida repare o mal que eu haja feito e do qual me arrependo".
Depondo o Evangelho sobre a colcha do leito, ergueu-se, pensativo, e abriu novamente a janela, buscando a visão do céu. Debruçou-se para a noite.
Estaria, acaso, em momento crucial, que ele mesmo desconhecia? Nisso, porém, ouve leve cicio à retaguarda. Na luz frouxa do candeeiro projeta-se um vulto.
– Quem é? – grita ele, aprontando a defensiva.
Volta-se inquieto e estaca, lívido. Acordada de chofre ao impacto do livro, colocado na cama, enorme cascavel emergira dos lençóis e, a fitá-lo, ameaçadora, preparava-se para desferir-lhe o golpe certeiro...

Do livro A Vida Escreve, obra mediúnica psicografada pelos médiuns Waldo Vieira e Francisco Cândido Xavier.





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