O caso
Pitanga
Hilário Silva
— Pitanga, suas contas serão encerradas hoje — dizia o
Dr. Abranches ao empregado surpreso. — Embora estimemos em você um cooperador
correto, não podemos conservá-lo.
— Doutor, por quê? — perguntou o pobre homem ao
engenheiro que o interpelava.
— Você já tem nove anos e pico. A fábrica não deseja ter
elementos estabilizados em demasia. Você sabe. A lei...
— Doutor, mas isso me acontece pela segunda vez na vida.
Sou viúvo e, apesar disso, crio seis netos órfãos de pai e mãe. Desisto de
qualquer direito. Preciso trabalhar. Vivo num barracão alugado, não tenho
roupa, não tenho facilidades, mas o que ganho dá para os meninos. Isso é a
minha vida...
O chefe notou que o servidor deitava lágrimas, qual se
fora mamoeiro dilacerado, e condoeu-se.
Ânimo, Pitanga! — falou, batendo-lhe no ombro. Mas João
Pitanga, o encarregado da limpeza, largou a vassoura e passou a soluçar.
O diretor, preocupado, deu-lhe o braço e arrastou-o,
quase, até o gabinete, e fê-lo sentar-se.
— Ora, ora! que é isso? Você, chorando? Você é um homem...
— Ah! doutor, tenho quase sessenta anos! ninguém me
empregará mais... E depois...
— Depois, o quê?
Pitanga arrancou do bolso um pedaço de pano pardo, que
devia ter sido um lenço em outra época, enxugou a pasta de suor e lágrimas, e
falou:
— Doutor, há vinte e oito anos, eu era empregado numa
casa bancária e conduzia cem contos de réis num trem suburbano. No atropelo do
desembarque, por falta de atenção, tomei uma pasta semelhante como sendo a
minha. Agarrei-a... Mas, ao abri-la, verifiquei o engano. Só havia lá dentro um
livro de contabilidade e vários cadernos de estudo. A firma que esperava o
dinheiro telefonou para o Banco. Detido no Distrito Policial, ninguém acreditou
na minha palavra. Não fosse um amigo que se responsabilizou por mim e teria
amargado muito tempo na cadeia. Quis suicidar-me, mas fiz-me espírita e
compreendi que o sofrimento é o remédio da purificação espiritual. Para pagar a
dívida, minha esposa e eu montamos uma lavanderia. Trabalhamos dez anos, quase
passando fome. E quando resgatamos a última prestação, minha mulher morreu
tuberculosa. Tínhamos um filho, bom companheiro, que foi esmagado sob as rodas
de um caminhão, ao entregar a roupa lavada. Quando a viuvez chegou, restava-me
a filha... Coloquei-me numa fábrica de massas alimentícias. Ganhava pouco, mas
tinha a compensação de ver Dorinha feliz.
Antes de completar dez anos de casa, como agora, fui
despedido. Empreguei-me aqui, como varredor. Minha filha casara-se, mas o
marido, que era operário numa fábrica de móveis, perdeu uma das pernas num
desastre de trem. Desde essa época, ficou nervoso, perturbado... Deu muito
trabalho e veio, por fim, a descansar na morte, há quatro anos. Dorinha, porém,
não resistiu e acompanhou o marido, depois de uma longa tuberculose. Deixaram-me
seis filhos... Seis crianças que esperam por meus braços de velho... Que farei?
O Dr. Abranches consolou-o. Faria tudo para ajudá-lo. Que
João viesse toda semana a ver se lhe obtinha uma beirada na fábrica. Naquela
hora, contudo, não podia torcer decisões da Diretoria.
E de semana a semana, Pitanga remendado, carregando o
chapéu, chegava, indagando:
— Dr. Abranches, será que já posso vir outra vez?
— Ainda não, Pitanga. Mas logo que a crise dos tecidos
desapareça, tratarei de seu caso.
E João voltava, mais triste. Para que a comida não
ficasse mais curta, começou a apanhar papéis na rua e pedir jornais velhos.
Diversas famílias espíritas passaram a cooperar.
II
Ameaçado de despejo e cercado de cobranças, João apanhava
sol para aquecer as costelas cansadas de bronquite, acocorado à porta de casa,
quando uma bicicleta chegou. Um rapaz dos correios entregou-lhe um telegrama.
Assunto urgente. Um amigo, que ele não conhecia,
chamava-o em termos carinhosos. Morava em bairro distante, estava doente e
queria vê-lo. Pitanga esperou quatro dias, até arranjar dinheiro para o bonde.
E fez a viagem, sem maiores preocupações.
Era médium passista. Costumava receber solicitações
daquela natureza para confortar doentes, aqui e ali... Espantou-se, porém, ao
chegar no endereço indicado, porque, ao dizer quem era, foi introduzido de
imediato.
Guiado por velha governanta, atravessou duas salas e
grande corredor ricamente mobiliados, e entrou num aposento em que um homem
enfermo parecia enterrado em colchas brancas. No doente, em que ossos se
mostravam à pele, só os olhos mostravam intensa vida. Entretanto, com esforço,
o doente estendeu-lhe a mão, como garra mole, e, depois de fazê-lo sentar-se,
falou, comovido:
— João Pitanga, conheço você há quase trinta anos, sem
que você me conheça. E decerto sairia do mundo sem apertar-lhe a mão; mas,
sitiado há quatro meses pelo câncer, conheci a Doutrina Espírita e minha
consciência despertou... Pedia a Deus não me deixasse partir sem vê-lo, para
pedir-lhe perdão...
Diante de Pitanga, boquiaberto, o homem fez longo
intervalo e continuou:
— Há vinte e oito anos, viajava ao seu lado, vindo da
academia em que me fiz contador. Ao desembarcar, tomei sua pasta, como sendo a
minha e só em casa dei pelo engano. Tinha nas mãos os cem contos de réis pelos
quais você sofreu tanto... Soube daí a dois dias que você estava na polícia,
acusado injustamente, mas calei-me. Era ambicioso. Tinha planos. Montei uma
loja com o dinheiro e a loja prosperou. Depois de dez anos, era um homem rico e
podia gastar... Esqueci o seu nome, o seu problema e atirei-me ao lucro fácil.
Fiquei milionário. Contudo, ai de mim! A fortuna envolveu minha casa em trevas.
Com dois filhos, minha esposa esqueceu as obrigações e entregou-se a um
aventureiro e humilhou-me quanto pôde. Por amor aos meus filhos, não me
desquitei. Minha mulher, porém, suicidou-se, ao ver-se abandonada pelo homem
que tanto mal me fez. Meu rapaz, envenenado talvez pelo dinheiro farto, começou
a fazer loucuras e morreu num desastre de automóvel, por ele conduzido em
estado de embriaguez. Minha filha casou-se, mas meu genro não se sentia com
necessidade de trabalhar, viciou-se com a maconha e acabou perturbado, num
sanatório. Viúva, minha filha não aguentou a solidão e, ainda impressionada com
o exemplo materno, suicidou-se também, deixando-me dois netos... Os meninos,
porém, são retardados mentais, e fui compelido a deixá-los indefinidamente num
colégio adequado...
Pitanga, machucado no coração, chorava copiosamente.
— Como vê — prosseguiu o enfermo —, você sofreu muito,
mas tenho pago um preço terrível pelas aflições que lhe dei... Antes de
conhecer o seu paradeiro, tomei contacto com as verdades do Espiritismo e
procurei distribuir o possível entre as instituições de beneficência...
E designando uma caixa forte:
— Peço a você, porém, que abra o cofre e retire os
novecentos mil cruzeiros que estão lá dentro. São seus... Não lhe entrego o
resto do que tenho, porque os dois netos precisam de pensão... Aceite, Pitanga!
Aceite e perdoe-me! E creia que não vou sem culpa na grande viagem... O seu
perdão, contudo, será para mim nova força no Mundo Espiritual...
Havia tanta confiança e doçura no pedido, que João abriu
o cofre e recolheu o dinheiro. Em seguida, conversaram, trocando confidências,
como velhos amigos. Oraram. Pitanga aplicou-lhe passes. O doente ainda viveu
seis dias no corpo físico e João visitou-o diariamente, assistindo-o, até à
hora última.
No dia seguinte ao dos funerais, Pitanga voltou à
fabrica, procurou o Dr. Abranches e contou-lhe o sucedido, pedindo conselho.
— Agora, João, você está bem — disse o chefe, sorrindo.
— Não, doutor. Estou preocupado. Não quero que meus netos
saibam que tenho esse dinheiro. Ajude-me a empregá-lo.
— Você poderá pagar suas dívidas e guardar mais de
oitocentos contos em ações na fábrica. Haverá bom rendimento.
— Mas...
— Mas o quê?
— Queria que o senhor pedisse à Diretoria para dar-me
trabalho, ainda que eu tenha de ser novamente despedido, daqui a nove anos...
O Dr. Abranches sorriu e prometeu colaborar. Daí a quatro
dias, quando Pitanga voltou, encontrou a ordem. Fora readmitido. E sem esperar
pelo dia seguinte, pediu a vassoura e recomeçou a varrer...
Do livro Almas em
Desfile, de Hilário Silva, obra mediúnica psicografada pelos médiuns Waldo
Vieira e Francisco Cândido Xavier.
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