A Comunidade dos Bichos
JORGE LEITE DE
OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF
Eu estava dormindo ontem à noite,
quando fui acordado por uma voz bem conhecida.
Era Machado, que foi logo me cumprimentando:
— Boa noite, Jó, deixei-te à vontade,
por algum tempo, mas hoje, passando por aqui, resolvi contar-te uma fábula, que
Esopo não teve tempo de narrar ainda em vida, mas que, consultando os arquivos
do Mundo Espiritual, percebi a beleza da história. Quer ouvi-la?
— Bom dia, amigo Bruxo, será um prazer
escutar-te.
Bem no centro do lado setentrional da
linha do Equador, da Floresta Amazônica, existe uma comunidade de bichos jamais
descoberta, que remonta à era em que Eva foi enganada pela cobra. Lá, como
ainda hoje, em todo o mundo, cada animal possui
sua língua: o porco grunhe, o cavalo relincha, o cão ladra, o pássaro
pia etc. Percebendo que a dificuldade de comunicação ali era grande, devido à Babel,
um papagaio, famoso por sua verve, propôs à comunidade florestal dos bichos,
muito antes de Zamenhof, uma língua universal, que denominou bichoranto.
Essa foi, desde então, a língua oficial
de todos os animais daquela imensa comunidade. Tão grande, que eles imaginavam
ser um continente. Afinal, não havia ao menos bicicleta lá, e o animal mais
veloz era, em terra, a onça pintada; na água, o pirarucu; e no ar a harpia. E esta nunca se aventurava
a voar mais do que algumas dezenas de quilômetros, pois suas presas eram
fartas, as árvores gigantescas e as águas abundantes.
A língua oficial passou a ter três
normas: popular, coloquial e culta. A primeira é falada pelo povaréu animal. A
segunda é utilizada nos pergaminhos literários. A terceira, porém, é a que
detém mais influência sobre tudo e sobre todos.
Vivia-se
ali em plena liberdade, mas imperava também a pena de talião: olho por olho,
dente por dente, aplicada a quem cometesse qualquer crime contra os seres de
sua espécie. Impunha-se lá a lei de murici: “cada um cuide de si”. Com o
tempo, as diversas sociedades animais perceberam que tal sistema era
contraproducente, tendo em vista que,
quase sempre, favorecia os mais fortes e astutos. Reuniu-se a bicharada e
combinou-se que, a partir de então, os animais teriam seus representantes entre
os bichos mais votados.
Também ficou acertada a criação de três
poderes: 1.º - o Executivo, administrador da coisa pública e da regulamentação
das covas a serem criadas, dos ninhos de cobras e passarinhos, limitação de
filhotes etc.; 2.º o Legislativo, a quem cabe a criação das leis e a
fiscalização dos demais poderes; 3.º - o Judiciário, que executa as leis, sob
demanda pessoal, de coletividades ou dos demais poderes.
Todos têm seus representantes... No
Executivo, reina soberana a sucuri, com a qual ninguém se mete impunemente. No
Legislativo, impera a voz da ariranha, lontra feroz e venenosa, muito perigosa.
O Judiciário é formado pelos tribunais
de primeira, segunda e terceira instância. Decidiu-se, também, que todas as
instâncias desse poder só atuam se provocadas. Fora disso, não possuem
autonomia.
Criadas as leis e, sobretudo, uma
Suprema Lei ou Constituição, esta rege todas as demais. A terceira e última
instância de julgamento é a do Tribunal de Justiça Supremo (TJS), a quem se
pode recorrer, se inconformado com a condenação nas instâncias inferiores. Como
nas demais instâncias, o TJS só atua se provocado, salvo se este for atacado.
Nesse caso, o presidente pode agir de ofício em defesa própria e dos membros do
colegiado. Prerrogativa do TJS...
Os crimes simples são reprimidos pelos
agentes policiais, e a investigação das infrações penais cabe aos delegados.
Nesse caso, a subordinação é ao Executivo, mas ninguém permanecerá preso por
mais de trinta dias sem autorização judicial.
Não entrarei em detalhes sobre os
juízos de primeiro e segundo grau. Apenas direi algo sobre o TJS, cuja última
composição é:
um presidente: a onça pintada,
carnívoro mais ágil, capaz de devorar qualquer animal menor que ele, da água,
do solo ou do ar;
um vice-presidente: a arara azul,
conhecida por sua beleza, tamanho e comportamento. Casais dessa espécie são
fiéis e dividem as tarefas de criar seus filhotes;
cinco membros:
1.º o mico-leão dourado, símbolo da
floresta, animal antiquíssimo, em extinção;
2.º a jacaretinga, impiedoso e velho
caçador de répteis, anfíbios, aves e pequenos mamíferos; nunca ataca animais de
grande porte;
3.º o boto cor-de-rosa, brincalhão que,
à noite, se transforma em macaco, seduz as macacas e, na manhã seguinte, volta
a ser boto;
4.º o camaleão, que se camufla nas cores
verde, amarela, vermelha, para enganar suas presas e predadores; come moscas e
mariposas com sua língua comprida, que gruda nas presas;
5.º a harpia, que é a ave de rapina
mais perigosa do planeta; alimenta-se de outros animais, até mesmo de
carneiros; chega a alcançar dois metros de comprimento da ponta de uma asa à
outra.
Pois bem, Jó, esses bichos, coerentes
com sua elevada moral, já haviam proferido três decisões favoráveis sobre a
prisão em segunda instância de animais condenados, em que defenderam brilhantemente
a culpabilidade dos crimes imputados a esses seres de pequena monta. Utilizando
a hermenêutica mais de acordo com a norma culta do bichoranto, concluíram que a
Constituição dava amplo respaldo à prisão em segunda instância dos réus, com direito,
inclusive, de continuar recorrendo do xilindró, que poderia ser uma gaiola, um
aquário ou uma jaula, conforme o caso.
Acontece que, ultimamente, fora
descoberta uma empresa de lavagem de animais sujos, que incomodara aos altos
representantes da bicharada. Alguns deles eram clientes poderosos, mas,
coitados, sem saberem que cometiam graves crimes de corrupção por nonadas como
a sujeira, apelaram à Suprema Corte...
Agora, com licença. Vou correndo ao TJS
ver como está o novo julgamento da bicharada da floresta, pois acabo de saber
que a hermenêutica estava confusa. A coerência animal, por certo, há de
prevalecer...
Até outro dia, amigo. Cuida-te.
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