terça-feira, 25 de março de 2014

Minhas memórias numa cadeira de balanço


CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@hotmail.com
De Londrina-PR

Assim!
Era sábado de primavera e este momento da narrativa abeirava-se às cinco da tarde. Com os anos, acabei por dispensar a vida na cidade e a me encantar com o som do campo, da natureza pura e liberta. À cidade, só me aventurava ir para cumprir com os deveres de cidadã, fazer compras e as visitas, um pouco regulares, ao médico Estêvão, clínico geral.
Recordo-me que a última vez que fui a uma consulta, à saída da clínica, do outro lado da rua, havia sido inaugurada uma loja de sofás, cadeiras e outros tipos de sustentação para o corpo – penso que o vocábulo sustentação até se torna engraçado e desvaloriza o invólucro carnal que possibilita à alma o seu progresso; às vezes, não, isso depende da atitude perante a vida.
Na verdade, quando avistei esta cadeira de balanço na qual estou recordando essas passagens, puxei Ernesta pelo braço – Ernesta é minha funcionária, cuidadora, motorista, mas antes de tudo minha grande amiga – e logo atravessamos a rua e estávamos na loja. Eu, feito uma criança, agarrei-me à cadeira, que nem por decreto soltaria – certas vezes, tornamo-nos ainda mais materialistas ou possessivos; mas, de certa forma, já melhorei um pouquinho, pois não me agarro mais aos parreirais de uva querendo engolir os cachos de uma só vez. A vida nos ensina.
Da aquisição da cadeira em diante, a maior parte dos meus dias passo como estou agora, entregue a ela; quando me balanço é bem suavemente, as náuseas são visitas um tanto comuns dos corpos mais vividos pelo tempo.
E exatamente aqui, onde me posiciono sobre a cadeira, na varanda que rodeia a casa, tenho a paisagem mais impressionante de tudo o que já vi – outros podem não concordar, mas meu consenso confirma isso. Nesta posição posso enxergar as pedras grandes e milenares organizadas pela montagem natural; o céu se mostra com a liberdade mais plena já vista; as flores miúdas, mas de hastes longas, se dobram e nunca se debatem com o vento; por isso vivem até o dia previsto de vida, elas são muito sábias; as árvores, pelo espaço subterrâneo, conquistam a fortaleza para suas raízes e tornam-se fortes e saudáveis senhoras seculares; a nascente, que dá vida ao grande rio mais à frente, inicialmente, é modesta, discreta em sua grandeza, que traz o néctar da manutenção da existência, pois para o Planeta a água é vital, imprescindível para a sua continuidade.
Ainda quero relatar o horizonte tão infinito aos olhos e tão conquistador à alma, pois quando esta estiver espírito comprovará a eternidade que nada mais é que o infinito. Também vejo os pássaros, felizes, cantando em agradecimento à força divina; a natureza em sua completude é uma excelente educadora, nós é que talvez sejamos ainda alunos insipientes na lição do valor à vida.
Aprendi, com os dias vividos, que mais temos a doar e bem menos a guardar; no entanto, normalmente nos apegamos a tanto e tão pouco somos capazes de passar adiante o que, na verdade, somente nos foi ofertado... emprestado e não passado a nós como posse definitiva.
Percebi que se podem criar vários sábados durante a semana, não para relaxar do trabalho, mas para compartilhar mais tempo com a família e realizar o que nos acalenta o coração; constatei que a palavra escrita no momento de grande emoção é capaz de nos reequilibrar e nos restaurar para o desfecho a construir, como desabafo escrito.
Sentada, ontem à noite, na poltrona da sala, quase concluindo um dos contos para a formação de mais um livro que será encaminhado à editora, atentei-me aos poucos objetos daquele cômodo; mais espaço, menos obstáculos para a boa energia circular. Senti-me feliz. Na verdade, de tão pouco necessitamos para viver com plenitude! Será fardo ou presente o que escolhermos carregar.
Balancei-me levemente na cadeira.
Veja! A coruja, que sempre me visita à mesma hora diária, chegou. E como gosto dessa amiga vespertina, quase noturna – pelo horário em que sempre aparece, entre as cinco da tarde até as seis e meia. Ela pousa sempre na borda branca da cerca que contorna a varanda. Com seus olhos compenetrados olha nos meus, querendo saudar-me. Amiga de longa data. E logo vai. E eu fico.
Ernesta me trouxe a xícara de café com leite... sempre às cinco e quarenta. Há dias que a xícara vem acompanhada de alguns mantecais(1), ou pãezinhos de queijo, ou alguma bolacha salgada integral. É sempre bom esse momento. Mas Ernesta não me acompanha na refeição; sempre diz que já lanchou na cozinha mesmo. Então, se queres um amigo, não o censures, compreende-o e aceita-o, a não ser que a atitude seja de prejuízo próprio ou para terceiros.
E neste sábado vieram mantecais; eles me trazem à recordação minha infância de quando eu e meus irmãos maiores comíamos com ardente jovialidade todos os mantecais que mamãe nos servia após as aulas da tarde. Essas aulas nos ensinaram muito, pois eram ministradas pela senhora Ingrid Thompson, inglesa com descendência francesa, apaixonada pela história do mundo; era dona de um vasto conhecimento.
Senhora Ingrid sempre nos ensinou que a grandeza não era só obter tão incontável cognição, mas, principalmente, compartilhá-la com pessoas que nos participam um pouco ou a vida toda. Explicava-nos que o que assimilávamos sempre seria nosso e nunca o perderíamos, se o compartilhássemos com o companheiro do momento na jornada eterna.
De um instante a outro, a lembrança trouxe-me a imagem do meu jovem falecido esposo, homem de tanta bondade e ternura. Ele era incapaz de lançar uma saudação friamente a quem quer que fosse; aprendi demais nos quatro anos de casamento. Sempre me dizia: “Dê atenção ao próximo como se fosse a mais amada pessoa da sua vida”.      
Foi a partir dessas palavras que me dei conta de que o outro simplesmente é a extensão da vida na qual estou inserida.
Edgard, quanto aprendi e quanto sinto a falta de seu olhar!... doce olhar!
É incrível como é rápida a junção dos pensamentos em nossa mente.
Logo me veio à tona a época na qual iniciei o magistério – aulas gramaticais.
Penso ser bastante remota a dificuldade de aprendizado das estruturas gramaticais de um idioma, mas como a maior parte da sala labutava para assimilar o conteúdo! A maioria deles entendia superficialmente; eram poucos os que dominavam as regras e sua aplicação; na verdade, somos tantos e estamos em patamares tão diferenciados! Por mais que comparemos não há uma pessoa sequer participando igualitariamente do momento na vida; podemos estar no mesmo lugar com muitas outras, mas o universo íntimo é estritamente individual.
E eu adorei cada aluno que por mim passou. Mesmo que tenha sido há tanto tempo, recordo-me, muitas vezes, de Sébastien, tão educado aluno francês; o bem iluminava os seus olhos.
Tomei mais um gole do café com leite e peguei mais um mantecal.
Quantas recordações! Quantas ações vividas!
Depois me veio a satisfação da escrita. Desde a minha infância, escrevi poemas, poesias, letras de música tentando pôr melodia sem conhecer o mínimo necessário da maravilhosa arte musical; cada vez que eu cantarolava a canção, entoava um ritmo inédito... coisas da vida.
Entretanto, os anos me deram muito gosto pelas narrativas mais breves como o conto e a crônica. Impus-me uma regra para a minha literatura: escrever sobre a vida, a nobreza de se viver... de receber esse tão magnânimo presente.
Dessa decisão, surgiram vinte livros, todos editados pela mesma editora. Talvez tenha sido oportunidade, simplesmente isso.
Tomei mais um gole para ajudar a empurrar o último mantecal.
Realmente a vida passa... e rápido, mas a colheita dos frutos é que se torna importante.
E, graças a Deus, sentada aqui, quantifico bem mais numerosas as felizes recordações. No entanto, houve um número razoável de incorreções... essas se transformaram em exemplos a não serem repetidos... mas... ainda uma vez ou outra reincido... e olhe... que me vigio! Percebi, naquela hora, que não havia mais nenhum vestígio dos raios solares. Ernesta já acendera a luz da varanda e agora mesmo me convidou para entrar. Vamos terminar o vigésimo primeiro livro, a maioridade na literatura. Então me recordo de que amanhã farei oitenta e oito anos.
Entrei. A luz da varanda ficou acesa, significando que não estava aparente, mas que havia moradores na casa. É assim para o corpo, não se sabe qual alma está acoplada ao físico, no entanto há centelha divina animando a matéria.
“Cada alma possui um caminho a trilhar;
cada espírito terá a liberdade ou a clausura;
cada ser conquista seu livre-arbítrio;
cada um pode ser protagonista ou coadjuvante de sua própria história;
cada um será o que de verdade quer ser.”
Essas foram as frases finais do meu vigésimo primeiro livro.
E Ernesta, sentada ao meu lado, finalizou salvando mais um documento no computador, intitulado: “As sombras que impreterivelmente serão luzes”.
Pela manhã será enviado à editora.

(1) Mantecais são biscoitinhos que derretem na boca. Veja como fazê-los em  http://www.mosaicodereceitas.com/2013/02/mantecal-biscoitinhos-que-derretem-na.html

Visite o blog Conto, crônica, poesia… minha literatura: http://contoecronica.wordpress.com/



Nenhum comentário:

Postar um comentário