sábado, 8 de março de 2014

História de gatos: a reencarnação de Jean


JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF

Aquela família de gatos tivera oito filhotes, um morrera ainda muito jovem, com poucos meses de idade. Falecera de um surto de varíola ocorrido na cidade de Pirapiranga- BA.
A mãe era católica apostólico-espírita e o pai somente espírita, o que não os impediu de batizar e crismar todos os seus gatinhos na Igreja Católica, sob as bênçãos da água benta e do gato padre, que com eles e demais fiéis repartia pães e peixes...          
Como moravam no interior, a vida era dura ali. O pai chamava-se Jean e a mãe, Sessi. Os filhotes foram batizados, por ordem da maior à menor idade como Tekinha, Raelte, Dinis, Charles, Pablo, Jau e Jack.
Todos eram bons filhos, mas um, em especial, dava muito trabalho ao gato Jean: dom Dinis, como o pai costumava chamá-lo, em virtude de seu porte altivo e valente.
Certo dia, quando dom Dinis ainda tinha quatro meses, seus irmãos mais velhos, Tekinha e Raelte, oito e seis meses, respectivamente, chegaram a casa miando desesperados.
Da porta de sua casa, assustada, dona Sessi perguntou-lhes:
— Mas o que está acontecendo aqui?
— Dom Dinis está ali na esquina enfrentando sozinho três cachorrinhos vira-latas bem maiores que ele.
— Chamem seus irmãos e vamos ajudá-lo, pois seu pai foi caçar ratos e ainda não voltou do trabalho até agora.
Reunida a família, encontraram Dinis todo arrepiado, cercado de cães pelos três costados, mas com as garras de fora, pronto para arranhar o primeiro que se metesse com ele.
Contudo, ao verem outros seis gatos aproximarem-se em posição de ataque a eles, os três cãezinhos não pensaram duas vezes, ganindo de medo, saíram correndo.
A família felina voltou para casa sã e salva, mas a partir desse dia Dinis ficou com a fama de valentão, embora nem ele se lembrasse do que acontecera naquela tarde ensolarada.
Papai Jean, ao voltar a casa com o alimento da família, sabedor do acontecimento do dia, recomendou a Dinis:
— Meu gatinho, papai o ama muito e não quer vê-lo brincando com gatos vadios da rua, muito menos brigando com cães, que são muito perigosos. Se você for pego desprevenido por um cão grande e feroz, suba na primeira árvore que encontrar, pois cachorros não sobem em árvore.
— É claro, papai, que farei isso, não nasci ontem e não sou bobo. É claro...
— Dom Dinis! Isso é modo de falar com seu pai? Não repita essa palavra; diga, está bem, papai... Vamos, fale!
Como era tímido, mas tido como teimoso, Dinis ficou mudo, enquanto o pai insistia:
— Fale, Dinis, o que lhe pedi, vamos...
— Claro...
— Claro, nãããooo, agora ficou escuro... Diga, apenas: “Está bem, papai...”
Nada respondia o filhote, até que o pai, cansado de insistir, disse-lhe, amigavelmente, não sem antes ouvi-lo murmurar, quase inaudível: — Está bem... É claro...
— Muito bem, não vou castigá-lo por uma bobagem dessas, mas comporte-se, seja educado, respeite seus pais, trate bem seus irmãos e não brinque com gatos moleques na rua, pois você já tem uma irmã e cinco irmãos para brincar. Não quero que as más influências estraguem a educação que lhes estou dando.
Assim passou-se o tempo, com Dinis amando cada vez mais seu pai, mas observando que o velho gato já não tinha forças para alimentar a família e adoecera gravemente.
Nem por isso, todavia, Jean deixava de conversar muito com alguns vizinhos de sua confiança, residentes poucas casas abaixo da sua. Em especial com um deles, pastor evangélico a quem muito admirava e era o chefe da única família de gatos de sua confiança, que também tivera sete gatos. Aliás, gatas, pois contrariamente à família de Jean e Sessi, a família do pastor era composta por seis gatinhas e apenas um gatinho.
Com esses felinos, Jean deixava seus filhotes brincar livremente.
Em especial quando ficaram mais velhos, à noite, as gatas e os gatos amiguinhos tinham o hábito de subir nos telhados das casas. Então miavam tanto que acordavam a vizinhança toda. Isso, porém, só aconteceria anos depois, quando Jean desencarnara após uma crise asmática e de pneumonia que o fizeram tossir e gemer dia e noite, durante vários meses.
Os diálogos de Jean com Josias, o gato pastor, eram bem interessantes, pois cada um respeitava a crença do outro. Ambos, contudo, não se davam conta de que Dinis, alheio aparentemente às suas conversas, registrava e apoiava o que seu pai dizia:
— Josias, admiro muito você e a educação que dá a sua família, mas, com todo o respeito, se Deus é bom e justo, como explicar que, numa vida tão curta como a nossa, haja no mundo tantas desigualdades? Como explicar a situação dos gatos de madame, que têm veterinários a sua disposição, as melhores comidas, nunca precisaram caçar ratos para comer, vivem em casas confortáveis, cercados de carinhos e mimos, têm almofadas macias para arranhar e dormir, enquanto nós vivemos aqui, nessa dificuldade imensa, tendo que caçar rato todo dia para nos alimentar e à nossa família?
— E ainda tendo que fugir dos cães das vizinhanças, que não são poucos, adoram nos perseguir e se divertem latindo quando nos veem em cima das árvores, sob os gritos e o riso das crianças e a indiferença dos adultos humanos... Dizia Josias.
— É, meu amigo, como explicar a existência de gatos que sejam adestrados pelos melhores profissionais, alimentados com leite, além de peixe de primeira qualidade, ao passo que a nós só nos resta caçar e comer ratos?
— Há gatos que assistem, dos colos de seus donos, aos melhores programas de TV, enquanto nós somos enxotados de casa, o tempo todo, por nossos patrões. Concordou Josias.
— Há também aqueles que passam o dia dormindo, comendo do bom e do melhor, têm as melhores companhias e todo o cuidado e amor a suas crias... Quanto a nós, nossos patrões nem nos agradecem quando os livramos dos ratos que infestam seus quintais e residências.
— Como se justifica isso? Refletia Josias. 
— Ó dura escravidão! Só mesmo a reencarnação explica tantas diferenças. Concluía Jean.
— E ainda há gatos que ou são mortos pelos próprios donos, os quais fazem churrasquinho deles, ou são devorados por cães, sem que seus proprietários liguem a mínima para isso... Confirmava Josias. Mas tudo isso está na vontade do Senhor, que temos de temer e obedecer. Louvado seja Deus! arrematava o pastor.
Até que, um dia, Jean veio a falecer, após ouvir, em silencioso respeito, as preces que Josias fazia em seu benefício. Desencarnou aos nove anos, deixando Sessi viúva, com sete anos e sete filhotes ainda jovens para alimentar.
Sessi, então, passou a trabalhar duro e contou com a ajuda de seus gatinhos e gatinha para continuarem a saga de sua última existência.
Dom Dinis, porém, ao crescer, precisou ir para outras terras, onde se casou com uma gata profeta, teve treze filhotes e vários netos.
Seus irmãos e irmã casaram-se também, tiveram filhos e netos. Dinis, todavia, nunca esquecera seu pai e jamais olvidara o esforço do velho para proporcionar à sua felina família uma educação primorosa.
Aconteceu que, durante anos, Lulu, esposa de Dinis, que era médium, passara a receber mensagens espirituais do espírito do sogro Jean, as quais muito confortavam Dinis e o orientavam a bem educar seus filhos.
Após anos de contato mediúnico, quando alguns gatos da família já estavam casados e tiveram filhotes, Dinis informou a sua nora que iria reencarnar, sem que dissesse em qual família iria renascer.
Depois disso, nunca mais deu qualquer notícia do Além.
Desde então, dom Dinis, entre uma e outra caça ao rato, passa dias e noites à sua procura, miando no claro ou no escuro, sem saber que o gato amado está tão perto...

Nota machadiana: Esta é uma crônica de ficção. Qualquer semelhança com a realidade de seu leitor ou leitora e respectiva família é mera coincidência. Mas, como murmurou Galileu Galilei, ao ser obrigado a renegar, diante da Inquisição, sua crença de que a Terra se move em torno do Sol: E pur si muove.

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