Lembrando o nosso querido
e saudoso pai...
Vivi
na casa do meu pai até os 18 anos de idade. A partir daí, passamos a residir em
localidades distantes e bem diferentes, ele em Minas, eu e depois minha própria
família no Paraná.
Hoje,
dia em que todos se lembram do próprio pai e desejam homenageá-lo, decidi
também fazê-lo.
Mas...
como?
Lembrei-me
então de dois textos que meu querido irmão Arthur Bernardes de Oliveira escreveu
sobre aquele que, com Anita Borela, nos pôs no mundo, facultando-nos uma
oportunidade preciosa que é passar novamente pela experiência reencarnatória,
único meio que possibilita à criatura humana a evolução. (Veem-se nas fotos abaixo: na
primeira, Anita Borela e meu pai; na segunda, tirada no dia do meu casamento,
meus sogros, eu, Célia, meu pai – de terno claro - e minha madrasta D.
Sinhaninha.)
Os textos – adiante transcritos – compõem o livro de memórias que Arthur escreveu aos 33 anos de idade, intitulado Uma estrela em forma de flor (capa ao lado), publicado em 28 de julho de 2014 pela EVOC – Editora Virtual O Consolador.
Ao
reproduzi-los desejo homenagear Astolfo Olegário de Oliveira – o A.O., como nós
o chamávamos, – personagem central, modelo e exemplo indiscutível de minha vida.
Eis
os textos escritos por Arthur Bernardes de Oliveira:
O pai é o exemplo
Meu
pai é um homem impressionante. Nascido em 1908, filho de José Basílio e de D.
Rita. Não conheci a vovó Ritinha e do meu avô só tenho uma recordação bastante
desagradável. A dos seus últimos momentos de vida, estirado numa cama, nos
estertores dos últimos suspiros. Aquele homem magro, cadavérico, com a língua
enroscada, assistindo, sem nenhuma possibilidade de luta, à chegada do fim.
Inteligência
aguda, nos cursos que fez, quase todos particulares, e com o esforço próprio,
foi o primeiro da sala. Pobre, tendo como mãe uma mulher um pouco debilitada
mentalmente, sofreu como cachorro, na infância, na mocidade e nos primeiros
anos de casado.
Estudou
por correspondência e concluiu um curso de Contabilidade, tendo defendido
alguns pedaços de pão, suplementando durante a noite o pouco ganho do dia.
Parece-me
que as dificuldades o levaram a uma vida um pouco desregrada nos seus primeiros
anos, até que a presença de Abel Gomes mudou o rumo de sua vida. Ingressando no
Espiritismo, desenvolveu enormemente a sua cultura, através da literatura
espírita, sem favor nenhum das melhores que o mundo conhece. Melhores e
maiores.
Fundou
o jornal “Arauto da Fé”, em companhia do Mário Vitoriano e Amadeu Santos, e
conseguiu, creio que por correspondência, uma carteira de jornalista.
Durante
muitos anos foi assim uma espécie de a grande cabeça da cidade. Escrevia quase
que sozinho dois jornais: “Arauto da Fé”, publicação espírita, e “A Tribuna”,
publicação da Prefeitura Municipal de Astolfo Dutra.
No
Espiritismo, cedo começou a sua faina de pregador, transformando-se num dos
maiores oradores espíritas que eu conheço.
Dono
de uma facilidade de expressão admirável e possuidor de um estilo claro e
correto, produziu páginas admiráveis. Polemista, dele se tornou célebre a participação
contra o Professor José Schiavo, da cidade de Ponte Nova, a respeito de
problemas e assuntos religiosos.
Tem
viajado por inúmeros estados e em toda a parte por onde passa deixa uma legião
de amigos e de admiradores sinceros.
Não
conheço ninguém com tanta capacidade de fazer novos amigos. É um homem bastante
experimentado e de tudo conhece um pouco. Embora haja assuntos dos quais ele
conheça muito.
Difícil
escrever sobre ele. Dono de um coração admirável, não distingue pessoas. Pobres
e ricos à sua presença sentem-se absolutamente à vontade.
Dono
de uma prosa cativante, com ele se passa horas e mais horas, sem que o relógio
nos desperte.
Sua
grande virtude é não medir dificuldades para ajudar seus semelhantes. Patrão
excelente, todos os seus viajantes tornaram-se mais ricos do que ele.
Dinâmico,
sua vida toda tem sido encaminhada no sentido de construir. Tem o hábito da
construção. Não fica sossegado, se não estiver edificando alguma coisa.
Politicamente
divergimos quase sempre. Quando na Revolução de 1932 esteve na iminência de ser
preso, parece que o seu espírito se inclinou para o terreno da oposição. E como
oposicionista ferrenho, tem acentuadas simpatias pela UDN. Ora, como eu sou fundamentalmente
avesso ao sistema político-partidário udenista, é natural que os nossos pontos
de vista não se encontrem, o que, sinceramente, lamento.
Eu
entendo que, embora mais moço, esteja em melhor situação para analisar
determinados problemas do que ele. Sobretudo porque em meu espírito ainda não
chegou aquela marca da perseguição que ele conheceu, duramente, de perto, e que
culminou por lhe dar uma visão muito pessoal das coisas, subordinando-se a uma
filosofia que eu não consigo aceitar.
É
natural que ele me suponha enganado, não só pela consciência que tem da própria
inteligência, indiscutível aliás, como pelo número de anos que leva de vantagem
sobre o filho.
É
o tipo do homem justo. Sua justiça só sofre distorções quando em debate certos
fatos políticos, e aí consolido milha posição, porque sou justo em todas as situações,
inclusive na política.
Como
pai, talvez motivado pela dureza de sua vida e de seus problemas iniciais,
nunca permitiu que nos aproximássemos muito dele, razão por que havia, e até
hoje ainda há, um certo temor dos filhos no debate de algumas ideias na sua
presença. Por isso mesmo, entregava à esposa a tarefa de nos encaminhar mais de
perto. É evidente que dele temos recebido sempre as mais preciosas orientações,
mas entendo que levamos vantagem, quando confrontamos a influência dele e de
minha mãe.
É
claro que ele não se sente diminuído com isso. Fã número um da esposa, sabe o
tipo de mulher e de santa, a quem ele transferiu, em grande parte, a tarefa da
educação dos filhos.
Nós,
em casa, nos nossos momentos de desânimo, algumas vezes, o culpávamos,
achando-o melhor para os estranhos do que para nós. No fundo, estávamos
enganados, porque ele em outra coisa não pensa senão na felicidade dos filhos.
Como
avô, talvez porque o tenha sido muito cedo, não é dos mais amorosos. Mas faz lá
de vez em quando a sua média com os netos. Todos nós o adoramos. Mesmo quando o
censuramos muito, naquilo em que não nos atende, fazemo-lo por amor.
Bastante
acomodado, raramente escreve aos filhos. Mas, quando o faz, apaga de uma só vez
todos os aborrecimentos provocados pelo silêncio tão longo.
Enfim,
é preciso uma boa análise para que o entendamos melhor.
Extremamente
caridoso, construiu, com outros irmãos, a Fundação Espírita Abel Gomes, para
abrigar menores desamparadas. Vive para aquela casa. Todos os seus sonhos se
orientam para a sua Fundação e tudo o que faz é visando ao desenvolvimento
maior daquela casa, com maior conforto e melhor educação para as meninas que lá
se abrigam.
Pai
de onze filhos, muito cedo ficou sozinho. Casou todas as filhas, e três dos
cinco filhos.
Em
matéria de planos, foi dele que herdou nosso mano Amaury. Ele faz planos
fabulosos, mas logo após acomoda-se, e os abandona, por comodismo, para ficar
em paz.
Solicitado
por toda parte, como orador espírita, quase sempre arranja uma “dor de cabeça”
para afastá-lo do ônibus.
É
das pessoas que conheço a que mais admiro e a quem mais afeição eu dedico.
Confidente de muitos anos, e companheiro de todas as horas, fizemos jornadas
memoráveis e debatemos ideias e problemas importantíssimos.
Sei
que a minha saída representou em sua vida uma lacuna, tão grande quanto a que a
sua ausência provocou no meu caminho.
Alegre,
jovial, prazenteiro, junto dele não se conhece tristeza. Amigo de seus amigos,
muitos apertos sérios tem enfrentado em sua vida, por não saber deixar de
atender a quem o procura.
Correto
em seus negócios, honesto até a sublimação, é um homem completo. Culto e
inteligente, bom e amigo, dinâmico e feliz.
É
assim o meu pai, como lhe disse, um homem impressionante. Que está construindo
uma obra que há de dignificar o seu futuro e abençoar o seu passado.
(O texto
acima foi escrito em 1964 quando Arthur tinha 33 anos e A.O., 56. Compõe o cap.
XIV do livro Uma estrela em forma de flor.)
Meu pai
Meu
pai era extremamente severo conosco. Não elogiava; não aplaudia; achava que a
gente estava sempre dando menos do que podia dar. Pelo menos, perto da gente.
Longe, não. Longe ele sempre falava bem dos filhos; elogiava alguma virtude que
a gente pudesse ter; algum desempenho nas manifestações das artes que a gente
sempre cultivava para apresentar nas reuniões de nossa juventude.
Era
como um rei ou uma rainha. Ai da gente se tentasse dirigir-lhe a palavra. Só
quando ele puxasse conversa ou perguntasse alguma coisa.
Não
me lembro que foi que eu e meu irmão mais velho, Amaury, fizemos para tomar
dele uma surra com um pau de barbante nas costas. Antigamente (eu não sei se
ainda há essa forma de apresentação desse tipo de barbante a que eu quero me
referir), mas antigamente esse barbante mais grosso, utilizado no comércio de
fumo em corda, era acondicionado em forma de – como direi? – de trançado, do
comprimento de mais ou menos 60 centímetros e formava uma espécie de corda
grossa, pesada, que batendo no lombo da gente deixava marcas profundas, até
cortes mesmo. Ele era assim.
Meus
dois irmãos mais velhos, a Marília e o Amaury, brilhavam na escola. Estavam no
1º e 2º anos do antigo curso primário (hoje esse curso é chamado de ensino
fundamental). Só tiravam, nas provas de desempenho, dez com distinção e louvor.
Era mais que dez. Mas como na avaliação eles só utilizavam valores até dez,
para dizer que aquela prova valia mais que dez, eles inventaram essa forma de
dizer isso, acrescentando ao número dez essa expressão “distinção e louvor!”
com uma exclamação enorme para chamar mais atenção ainda. Meu pai espumava de
tanta alegria. Todos, na pequena cidade de Astolfo Dutra... (antigamente minha
cidade, como distrito de Cataguases, chamava-se Porto de Santo Antônio. Vejam
que coisa mais bonita: Porto de Santo Antônio. Porto, lugar de emoções. De quem
parte, emoções de tristeza, de saudade, de dor. De quem chega, emoções de
alegria, de reencontro, de renovação... E ainda mais: de Santo Antônio, o santo
das casadoiras.) Quando virou cidade, resolveram mudar e colocaram um nome que
nada tem a ver com a cidade: Astolfo Dutra. Astolfo Dutra foi um homem muito
importante. Maior até que a nossa cidade e seus habitantes. Mas nada tinha a
ver com o nosso Porto de Santo Antônio.
Pois
bem, aí cheguei eu. Foi um fracasso. Tomei pau no terceiro ano. Uma tragédia.
Fiquei marcado como a exceção inevitável. Não há um provérbio que diz que “toda
regra tem exceção”? Pois bem! Eu fui a exceção dos filhos do Astolfo. Ganhei
logo novo status e nova alcunha: o burro da família. Nisso que aconteceu, meu
pai não quis investir comigo nos estudos. Amaury foi ser interno no Colégio de
Cataguases, onde continuou brilhando como sempre; eu fui ficando por cá fazendo
os mandados da casa. Minha obrigação mais importante era ir ao correio buscar a
correspondência de meu pai que chegasse no trem das sete. Eu podia estar no
centro assistindo a uma reunião importante. O trem fazia barulho na linha por
detrás da nossa rua, meu pai olhava para mim, indiscretamente, todo mundo via,
e eu tinha que levantar rápido e correr para o correio aguardar que Dona
Guiomar distribuísse a correspondência chegada para os escaninhos de cada
portuense que comumente recebia maior volume de correspondência para, depois,
abrir a porta e começar a entregar às pessoas presentes aquilo que houvesse
chegado. De posse daquele maço de cartas, cartões, revistas, jornais, voltava
eu orgulhoso para entregar tudo aquilo a meu pai.
Tempos
depois, acho que, com a consciência pesando, meu pai chegou em casa, em cima
quase do exame exigido para a matrícula no primeiro ano do ginásio (hoje é uma
parte do tal curso fundamental) e me disse de supetão:
–
Olha, vou dar a você uma chance. Vai fazer a prova do exame de admissão e se
passar eu o mando pro ginásio. Se não passar, a manivela está te esperando para
o empacotamento do fumo. (Meu pai era fumeiro: vendia fumo para os estados de
São Paulo, Mato Grosso, Paraná etc. Naquela altura já tinha um punhado de
viajantes trabalhando pra ele.)
Parei
com tudo. Minha mãe me liberou de todas as obrigações e eu me debrucei sobre um
livro com toda a matéria exigida na prova e com muita sorte consegui ser
aprovado. Que sufoco! Mas valeu a pena. Pude então começar, já velho para a
primeira série, minha trajetória estudantil. Eu estava entrando no ginásio com
quatorze anos, quando todos os meninos da minha idade estavam já saindo com o
diploma na mão.
Meu
pai era um homem extraordinário. Um dos maiores oradores da Zona da Mata
mineira. Autodidata, foi pioneiro,
juntamente com Amadeu Santos e Mário Vitoriano, na divulgação da doutrina
espírita em nossa terra.
Hoje,
Astolfo Dutra é a mais espírita cidade de nosso País. Fruto, sem dúvida, da
trajetória desses três pioneiros de que ninguém se esquece na cidade.
(O texto
acima foi escrito em 2012 quando Arthur tinha 81 anos e A.O. já havia
desencarnado. Compõe o cap. 2 do
Apêndice constante do livro Uma estrela
em forma de flor.)
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