sábado, 12 de abril de 2014

Identidade cultural e vontade


JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF

Bom-dia, amiga leitora! Como passou a noite? Sonhou bastante? What about your dreams? Então acorda para a realidade. O que você foi ontem já não é hoje. Está em questão sua identidade cultural.
A ideia de Descartes de que minha existência está comprovada pelo ato de eu pensar acaba de ser contestada. Eu penso porque há, no espaço em que habito, inúmeros outros pensamentos com os quais me identifico em determinado contexto. Não sou original, capto a noção que mais se ajusta ao momento. Ou melhor, aproprio-me das ideias segundo minha conveniência.
— Mas nada há de você em seu pensamento, Machado?
— Há a vontade. Já nascemos com ela. O bebê, quando emite seu primeiro choro, indica a todos que tem vontade de viver.
A partir daí, o choro vai indicar muitas outras coisas mais:
chora porque quer mamar;
chora porque sente cólica;
chora porque quer o afeto materno;          
chora porque quer dormir;
berra porque sente desconforto.
Depois, maiorzinho, surgem outras vontades:
a vontade de usar aqueles sons que transmitem outras vontades, ou seja, as falas;
a vontade de mostrar para a mamãe que já sabe se virar sozinho, no pinico ou no prato;
a vontade de andar, quando o instinto manda, primeiro, engatinhar;
a vontade de ter todos os brinquedos do mundo e com eles brincar;
a vontade de ter amiguinhos,
a vontade de ter o mundo só para si,
pois a principal vontade é a de ter:
ter mamãe;
ter papai;
ter tudo que tiver vontade de ter.
Mais tarde, adulto, continua com a vontade de ter, ter, ter...  Ter amigos, ter roupas bonitas, ter casa espaçosa, ter carros, ter uma família feliz, ter o poder...
A única coisa que não se gosta muito de ter é trabalho, mas se tiver que ter, que seja o melhor emprego, o mais alto salário; ter, enfim, quem trabalhe para ele, mas ter o sucesso só para si.
Desse modo, surge a apropriação.
Algumas pessoas se apropriam dos gestos que admiram em outras, do modo de falar e até do modo de pensar de outrem.
— Falta-lhes originalidade, Machado!
— E sobra-lhes esperteza, quando percebem que isso lhes dará uma posição de destaque na sociedade.
— Mas, e se o que imitam nos outros é negativo?
— Essa não deixa de ser uma forma de se identificar com o que desejam fazer sobressair em seu comportamento. Por trás disso está a vontade de se apropriar do modo patife de ser do outro, pois há pessoas que adoram ser canalhas.
— Esse modo de agir, entretanto, não indica uma opção central, um pensamento direcionado a um objetivo?
— Depende do objetivo e da conveniência. A mesma pessoa pode ora ser patife, ora ser boazinha. Em dado momento, manifestar perfeita identidade com seus amigos nas elucubrações malignas, visando a um fim comum; e, em outra ocasião, trair as maquinações antes apoiadas ou, descobrindo-se desmascarada, aliar-se aos donos da situação.
— Isso acontece muito na política, Bruxo do Cosme Velho...
— E como acontece. A demagogia rege as relações políticas. Mas não é apenas no Congresso que vemos isso. A política está presente em toda relação social onde haja interesses comuns.
— Exemplifique, Machado, por gentileza.
— Se desejo apropriar-me de um cargo de chefia em minha empresa, procuro ser amigo de todos os colegas de trabalho, puxo o saco do meu chefe, o qual acompanho em todas as suas decisões e andanças, muitas vezes após ouvir a maioria dos colegas, mas sempre evitando contrariar o mandachuva empresarial e, aliado a um trabalho presencial intenso procuro inteirar-me de todas as necessidades e complexidades da firma.
Depois, uma intriguinha aqui, outra ali, uma difamação lá, outra acolá, sempre disfarçadas de um zelo pela instituição, vão somando seus pontinhos.
— Mas isso não seria puro interesse pessoal?
— Evidentemente, Joteli, mas a vontade está na base de tudo: motivação, interesse, fidelidade ou infidelidade, lealdade ou deslealdade, paixão...
— A isso, acrescem-se as promessas, fruto da interação de minha vontade com as vontades alheias, o que não significa que, assumido o cargo de chefe, eu lhes atenda aos anseios. Estou certo, Bruxo amigo?
— Certíssimo! Primeiramente, satisfeita minha vontade, buscarei, na medida do possível, satisfazer a vontade de meus entes queridos: familiares e amigos. Enfim, as identidades são descentralizadas, mas a vontade é central. Primeiro eu, depois os meus...
— É por isso que algumas pessoas, mais positivistas, repetem o bordão: “Aos amigos, tudo; aos inimigos, o rigor da Lei”, não é mesmo, Machado?
— Alguns vão além e dizem: “Eu sou a lei. O que satisfizer a minha vontade é legal, o que não satisfizer, mesmo que tenha sido prometido por mim, “é ilegal, imoral ou engorda”.
— Aliada à vontade do poder está a da riqueza, não é mesmo Bruxo? Não mora aí o perigo?
— É verdade, amigo, mas a vontade-mãe é a da conquista do poder, seja ele material, seja espiritual. E isso serve tanto para os que creem na existência do espírito quanto para os que não o creem. Para estes últimos, aliada à hipocrisia e aos interesses pessoais, basta a presença de espírito na captação das vontades coletivas às quais sobrepõe a sua.
A única coisa real em nós é a vontade. Transitamos de uma identidade cultural a outra com a mesma facilidade com que trocamos de roupa. E assim, reina absoluta a vontade na luta pela realização dos nossos sonhos de poder.
— E o descentramento da identidade, Machado?
— Ora, Joteli, então você ainda não percebeu? Keep your eye on the target. Todos nós somos movidos, unicamente, pela vontade. O resto são conveniências...

Visite o blog Jorge, o sonhador: http://www.jojorgeleite.blogspot.com.br/



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