sexta-feira, 3 de abril de 2020



O Espiritismo perante a Ciência

Gabriel Delanne

Parte 3

Continuamos o estudo do clássico O Espiritismo perante a Ciência, de Gabriel Delanne, conforme tradução da obra francesa Le Spiritisme devant la Science.
Nosso objetivo é que este estudo possa servir para o leitor como uma forma de iniciação aos chamados Clássicos do Espiritismo.
Cada parte do estudo compõe-se de:
a) questões preliminares;
b) texto para leitura.
As respostas às questões propostas encontram-se no final do texto abaixo. 

Questões preliminares

A. Que faculdade da alma mais tem aguçado a atenção dos filósofos?
B. O livre-arbítrio existe realmente ou não passa de uma ilusão?
C. O Positivismo contém tendências materialistas?

Texto para leitura

62.  Estamos certos de que o pensamento não é produzido nem pelo conjunto do cérebro, nem por um movimento vibratório de suas moléculas. Asseguremo-nos, então, de que não é ele, também, produto da matéria cerebral.
63. Retomemos, para examiná-las, as teorias de Cabanis e Carl Vogt: é possível que o pensamento seja uma secreção do cérebro?
64. Tão falsa se apresenta essa ideia, tão pouco em harmonia com a realidade dos fatos, que um declarado materialista como Büchner recusa-se admiti-la. Diz-nos ele: “Apesar do mais escrupuloso exame, não podemos encontrar analogia entre a secreção da bílis ou a da urina, e o processo pelo qual se forma o pensamento no cérebro. A urina e a bílis são matérias palpáveis, ponderáveis e visíveis; e ainda mais, matérias excrementícias que o corpo usou e que ele rejeita. O pensamento, o espírito, a alma, pelo contrário, nada tem de material, não é ela mesma uma substância, mas o encadeamento de forças diversas formando uma unidade, o efeito do concurso de muitas substâncias dotadas de forças e de qualidades”.
65. Conclui Büchner: “A secreção do fígado, dos rins, se realiza sem o sabermos, independentemente da atividade superior dos nervos; ela produz uma matéria palpável. A atividade do cérebro não pode existir sem a consciência completa e não segrega substâncias, porém forças. Todas as funções vegetativas, a respiração, a pulsação do coração, a digestão, a secreção dos órgãos excretores se verificam tanto no sono como em estado de vigília; mas as manifestações da vida se suspendem no momento em que o cérebro, sob a influência de uma circulação mais lenta, fica mergulhado no sono.”
66. Como vemos, para Büchner o pensamento não é uma secreção; provém de um conjunto de forças diversas que formam unidade; é uma resultante; mas uma resultante de quê? Será do conjunto do cérebro ou somente de certas partes? Poderá algo invisível e imponderável, como o pensamento, ser produzido por diferentes órgãos que se reúnem para um efeito comum? Ele nada nos diz, nem temos necessidade de explicação para perceber que essa maneira de encarar o pensamento é ainda errônea. Büchner reconhece que o pensamento é imaterial; perguntamos, agora, como poderia ser produzido pelo cérebro, que só se compõe de matéria?
67. Abordemos mais de perto o assunto e veremos que, de qualquer maneira que o encaremos, é impossível supor que o cérebro segregue o pensamento, ou que este dele se desprenda, como a eletricidade dos corpos que a contém. É evidente, averiguado, incontestável, que o trabalho cerebral determina uma elevação de temperatura no cérebro. Produz-se uma oxidação das células, que se pode medir, como fez Schiff, operando sobre cães ou sobre o homem; como o atestam as experiências de Broca, em estudantes de medicina; ou, enfim, as de Bayson, que pesava os sulfatos e os fosfatos que entravam em seu corpo pela alimentação, para demonstrar que a quantidade dos sais, rejeitada pelas excreções, aumentava de maneira sensível, após um trabalho cerebral.
68. Como podem estas experiências, de que os materialistas têm pretendido fazer um argumento, infirmar a existência da alma? Elas demonstram, simplesmente, que quando o cérebro trabalha, o sangue aí aflui e determina uns movimentos moleculares, que se traduzem materialmente por ações químicas. Acreditar que o pensamento seja o produto dessas reações seria erro grave, porque, se o cérebro segrega o pensamento, é preciso explicar a natureza e o resultado dessa secreção.
69. Uma das faculdades da alma que mais têm chamado a atenção dos filósofos é a memória. Faculdade misteriosa essa, que reflete e conserva os acidentes, as formas e as modificações do pensamento, do espaço e do tempo; na ausência dos sentidos e longe da impressão dos agentes externos, ela representa essa sucessão de ideias, de imagens e de acontecimentos já desaparecidos, já caídos no nada. Ela os ressuscita espiritualmente, tais como o cérebro os sentiu, a consciência os percebeu e formou.
70. Para explicar-lhe o mecanismo, Aristóteles admite que as impressões exteriores se gravam no espírito, quase pela forma por que se reproduz uma letra, colocando-se um sinete sobre a cera. Descartes crê também que essa faculdade provém dos vestígios que deixam em nós as impressões dos sentidos ou as modificações do pensamento. Adotemos a maneira de ver desses grandes homens e indaguemos como será possível conciliá-la com os dados que Moleschott nos fornece sobre a natureza do princípio pensante.
71. O sábio químico afirma, em magnífico capítulo, que um movimento incessante da matéria, que transformações maravilhosas e múltiplas se executam no interior de nosso corpo, e, apoiando-se nos trabalhos de Thompson, de Vierodt e de Lehumann, os quais, por sua vez, tinham por base os de Cuvier e Flourens, declara que “os fatos justificam plenamente a suposição de que o corpo renova a maior parte de sua substância em um lapso de vinte a trinta dias”. E alhures diz mais: “O ar que respiramos muda a cada instante a composição do cérebro e dos nervos.”
72. Se isto é verdade, se somos uma nova entidade de trinta em trinta dias, se todas as moléculas que compõem nosso ser entram no turbilhão vital, como conservamos, ainda, na idade madura, a lembrança de atos que se passaram em nossa mocidade? Como explicará Moleschott que nos conservemos sempre os mesmos, apesar desse mutações?
73. É incontestável que possuímos a invencível certeza de ser sempre idênticos; mesmo quando envelhecemos, sabemos que a essência de nós mesmos não muda. Em meio às vicissitudes da existência, nossas faculdades podem aumentar ou obliterar-se, nossos gostos variar ao infinito e nossa conduta apresentar as mais singulares contradições; estamos certos, porém, de que conservamos o mesmo ser; temos consciência de que outro não tomou nosso lugar e, entretanto, todos os elementos de nosso corpo foram renovados muitas vezes. Nem um átomo, do que o formava há dez anos, subsiste nele presentemente. Como se mantém, então, em nós a memória dos acontecimentos passados?
74. Respondem os espiritualistas que existe em nós um princípio que não muda e cuja natureza indivisível não está, como a matéria, submetida à destruição. É a alma que conserva a lembrança dos fatos, as conquistas da inteligência e as virtudes adquiridas por incessante luta contra as paixões.
75. Não podemos admitir as teorias materialistas, porque elas tendem simplesmente a suprimir a responsabilidade dos atos. Se não somos, com efeito, senão uma associação de moléculas, sem cessar renovadas, se as nossas faculdades são apenas a tradução exata do desenvolvimento que o acaso daria a certas partes do cérebro, com que direito poderia o homem prevalecer-se de suas qualidades e por que se condenaria um malfeitor, desde que sua inclinação para o crime dependeria de certa disposição orgânica que ele não pode modificar?
76. Os combates sustentados contra os impulsos que nos arrastam para o mal indicam que há em nós uma força consciente dirigida pelas leis da moral. Essas lutas interiores revelam a ação da vontade, a despeito de todos os sofismas com que se pretende estabelecer que ela é quimérica. Não somos senhores sempre, é verdade, de dominar as nossas sensações; elas se nos impõem, muitas vezes, com energia: um espetáculo sensibilizador enche-nos de doce emoção; provoca a nossa revolta a vista de uma injustiça; encanta-nos uma harmonia suave; mas essas impressões tão diversas são bem diferentes da vontade, que é caráter mais íntimo do eu e da personalidade humana.
77. Quando estamos em face de um ato a realizar, ponderamos os motivos que nos podem dirigir; faz-se ouvir a voz do interesse em oposição à do dever e o que constitui o mérito é o poder que temos de escolher entre os dois móveis. Por sermos livres é que somos responsáveis; esta grande verdade está tão firmada na consciência universal que nunca se viu punir um louco por ter cometido um crime.
78. O livre-arbítrio não é uma ilusão. É ele que dá ao homem honesto a força de preferir a morte à infração das leis; é ele que impele os grandes corações a devotamentos heroicos; e se o homem não passasse de um joguete cego das forças físico-químicas, seria preciso despedirmo-nos de todos os nobres sentimentos, de todas as aspirações generosas!
79. Tentaram provar, comparando-se o peso de grande número de cérebros humanos, que a inteligência mais desenvolvida correspondia sempre a um encéfalo mais pesado. Estatísticas numerosas foram estabelecidas, mas até agora os resultados não são bastante precisos para permitir que se formule uma lei.
80. Vê-se, é verdade, que, à medida que nos aproximamos das raças inferiores, a capacidade craniana diminui. Nestes últimos tempos, Bischof, Nicolucci, Hervé, Broca e outros fizeram pesquisas muito curiosas a esse respeito, mas, tanto como seus predecessores, não puderam deduzir uma regra dos casos numerosos que observaram; viram-se idiotas com o volume do cérebro tão considerável quanto o de pessoas que gozavam da integridade de suas faculdades intelectuais.
81. Nesta espécie de pesquisa é preciso não confundir o órgão com a função. Se vemos que certas partes do corpo crescem mais que outras, é que elas trabalham mais. Sabe-se que os ferreiros têm o braço direito mais forte que o esquerdo, porque é com aquele que manejam o martelo, assim como os torneiros têm a perna esquerda mais volumosa que a direita, porque é a de que se servem constantemente. Concluir-se-á que estes homens são ferreiros ou torneiros porque seus membros se acham mais desenvolvidos?
82. O raciocínio é o mesmo para com o cérebro. Se, em certos casos, se observa uma correlação entre seu volume e uma grande atividade intelectual, prova isto tão-só que o espírito atua sobre ele com intensidade. Disse excelentemente Hervé: “O encéfalo cresce em proporção à atividade funcional de que é a sede. É essa uma lei que se aplica a todos os órgãos, em toda a série animal; ora, qual é a atividade funcional do cérebro? A intelectual e a moral.” O peso e o volume do cérebro nada têm, portanto, de comum com a existência da alma e não podem invalidá-la.
83. Diremos, em resumo, que do estudo dos fatos ressalta a certeza de que possuímos um princípio pensante, independente da matéria, que não está submetido, como esta, às transformações da vida, e no qual reside a memória.
84. Surpreende-nos ver como os materialistas se extraviam quando abandonam o sólido terreno da experiência e se aventuram, guiados por hipóteses, no domínio filosófico. É que não querem admitir senão o que é visível, tangível, que se pode medir. Nada teríamos que alegar contra esse método, se dele se servissem sempre; mas o que não é justo é que só o apliquem aos fenômenos psíquicos. Broussais dizia: “Dissequei muitos cadáveres, mas nunca encontrei a alma.” Entretanto admitia a vida e as ciências naturais que só repousam sobre entidades.
85. Escreveu Langel: “A Química contenta-se com palavras, todas as vezes que lhe é impossível penetrar a essência mesma dos fenômenos. De que fala ela sem cessar? De afinidade. Não é isso uma força hipotética, uma entidade tão pouco tangível como a vida e a alma? A Química deixa à Fisiologia a ideia da vida e recusa ocupar-se com ela. Mas a ideia em torno da qual a Química se desenvolve tem alguma coisa de mais real? Essa ideia é muitas vezes inapreensível, não só em sua essência senão ainda em seus efeitos. Pode-se, por exemplo, meditar um instante nas leis de Berthollet, sem compreender que estamos em face de um mistério impenetrável? Nas experiências que lhe serviram de fundamento as reações químicas são conduzidas em condições puramente estáticas e independentes das afinidades propriamente ditas; mas no fenômeno de uma combinação, nessa atração que precipita um para os outros átomos que se procuram, que se juntam, escapando aos compostos que os aprisionavam, não há com que confundir o espírito? Por mim, penso que quanto mais se estudam as ciências em sua metafísica, mais se acentua a convicção de que esta nada tem de inconciliável com a filosofia mais idealista. As ciências analisam as reações, tomam as medidas, descobrem as leis que regulam o mundo fenomenal; mas não há nenhum problema, por humilde que seja, que não as coloque em face de duas ideias sobre as quais o método experimental não tem nenhuma inferência: em 1º lugar, a essência da substância modificada pelos fenômenos; em 2º lugar, a força que provoca essas modificações. Só conhecemos, só vemos o exterior, as aparências: a verdadeira realidade, a realidade substancial e a causa nos escapam.”
86. Não podemos terminar melhor esta revista do que citando as seguintes palavras do ilustre fisiologista Claude Bernard: “A matéria, qualquer que seja, é sempre destituída de espontaneidade e nada provoca; só faz exprimir por suas propriedades a ideia de quem criou a máquina que funciona. De sorte que a matéria organizada do cérebro, que manifesta fenômenos de sensibilidade e de inteligência próprios ao ser vivo, não tem, do pensamento e dos fenômenos que ela manifesta, mais consciência do que a matéria bruta teria de uma máquina inerte, de um relógio, por exemplo, que não possui consciência dos movimentos que manifesta ou da hora que indica; assim, também, os caracteres de impressão e o papel não têm consciência das ideias que reproduzem. Assegurar que o cérebro segrega o pensamento, seria o mesmo dizer que o relógio segrega a hora ou a ideia do tempo. É preciso não supor que foi a matéria quem criou a lei de ordem e de sucessão; seria isso cair no erro grosseiro dos materialistas.”
87. Saint-Simon prestou um verdadeiro serviço ao espírito humano, mostrando, com sagacidade, que se deve conceder à alma maior importância que aquela que lhe deram os filósofos do século XVIII. Fourier, apesar do sensualismo de sua época, acreditava na alma e na sua imortalidade.
88. Afora esses dois grandes homens, existe uma plêiade de pensadores de escol, como Pierre Leroux, Jean Raynaud, Lamennais e outros, que reergueram brilhantemente o estandarte espiritualista.
89. Acreditava-se que a vitória lhes estava definitivamente assegurada, quando se revelou, entre os discípulos de Saint-Simon, um filósofo de primeira ordem - Augusto Comte, que fundou um sistema denominado positivismo, que teve o mérito de opor à imaginação, realmente muito errante dos seus predecessores, as frias e rígidas doutrinas da tradição baconiana.
90. Comte procurou reanimar o sensualismo, aplicando-lhe a ideia do progresso, mas faliu em sua tentativa, e foi forçado, depois de ter querido explicar tudo pela experiência e pela observação, a reconhecer que existe em nós uma faculdade: o sentimento, que não pode ser ignorado impunemente. Acabou por inventar uma espécie de religião que se perdia nas nuvens de um misticismo incompreensível. Era, segundo Huxley, “um catolicismo a que faltava o cristianismo”. Mas seus discípulos não o acompanharam nessa estrada; os dissidentes caíram no excesso oposto e são agora verdadeiros materialistas, se bem que disto pretendam escusar-se.
91. Um dos mais ilustres representantes do Positivismo é Littré. Durante toda a sua vida, esse trabalhador infatigável defendeu a nova concepção, expurgando-a daquilo que seu vigoroso espírito achava inútil ou supérfluo. Foram estas supressões que o determinaram a separar-se de Augusto Comte e a reduzir as doutrinas de seu mestre ao que elas tinham de verdadeiramente útil. Mas acentua as tendências materialistas, que o Positivismo contém em gérmen, embora pretenda ficar neutro entre os dois sistemas que disputam a conquista dos espíritos: o espiritualismo e o materialismo.

Respostas às questões preliminares

A. Que faculdade da alma mais tem aguçado a atenção dos filósofos?
Trata-se da memória, essa faculdade misteriosa que reflete e conserva os acidentes, as formas e as modificações do pensamento, do espaço e do tempo. Na ausência dos sentidos e longe da impressão dos agentes externos, ela representa essa sucessão de ideias, de imagens e de acontecimentos já desaparecidos, já caídos no nada. Ela os ressuscita espiritualmente, tais como o cérebro os sentiu, a consciência os percebeu e formou. (O Espiritismo perante a Ciência, Primeira Parte, Cap. I.)
B. O livre-arbítrio existe realmente ou não passa de uma ilusão?
O livre-arbítrio não é uma ilusão. Ele existe realmente e é ele que dá ao homem honesto a força de preferir a morte à infração das leis; é ele que impele os grandes corações a devotamentos heroicos. Se o homem não passasse de um joguete cego das forças físico-químicas, seria preciso despedirmo-nos de todos os nobres sentimentos, de todas as aspirações generosas! (Obra citada, Primeira Parte, Cap. I.)
C. O Positivismo contém tendências materialistas?
Sim. Mesmo após as ideias de Littré, que expurgou a doutrina positivista daquilo que seu vigoroso espírito achava inútil ou supérfluo, persistem no Positivismo as tendências materialistas, que ele já continha em gérmen. (Obra citada, Primeira Parte, Cap. II - O materialismo positivista.)


Observação:
Para acessar a 2ª Parte deste estudo, publicada na semana passada, clique aqui: https://espiritismo-seculoxxi.blogspot.com/2020/03/o-espiritismoperante-ciencia-gabriel_27.html




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