O Espiritismo
perante a Ciência
Gabriel Delanne
Parte 3
Continuamos o estudo do clássico O Espiritismo perante a Ciência, de Gabriel Delanne, conforme
tradução da obra francesa Le Spiritisme
devant la Science.
Nosso objetivo é que este estudo possa servir para o leitor
como uma forma de iniciação aos chamados Clássicos do Espiritismo.
Cada parte do estudo compõe-se de:
a) questões preliminares;
b) texto para leitura.
As respostas às questões propostas encontram-se no final do
texto abaixo.
Questões preliminares
A. Que faculdade da alma mais tem aguçado a atenção dos
filósofos?
B. O livre-arbítrio existe realmente ou não passa de uma
ilusão?
C. O Positivismo contém tendências materialistas?
Texto para
leitura
62. Estamos certos
de que o pensamento não é produzido nem pelo conjunto do cérebro, nem por um
movimento vibratório de suas moléculas. Asseguremo-nos, então, de que não é
ele, também, produto da matéria cerebral.
63. Retomemos, para examiná-las, as teorias de Cabanis e
Carl Vogt: é possível que o pensamento seja uma secreção do cérebro?
64. Tão falsa se apresenta essa ideia, tão pouco em
harmonia com a realidade dos fatos, que um declarado materialista como Büchner
recusa-se admiti-la. Diz-nos ele: “Apesar do mais escrupuloso exame, não
podemos encontrar analogia entre a secreção da bílis ou a da urina, e o
processo pelo qual se forma o pensamento no cérebro. A urina e a bílis são
matérias palpáveis, ponderáveis e visíveis; e ainda mais, matérias
excrementícias que o corpo usou e que ele rejeita. O pensamento, o espírito, a
alma, pelo contrário, nada tem de material, não é ela mesma uma substância, mas
o encadeamento de forças diversas formando uma unidade, o efeito do concurso de
muitas substâncias dotadas de forças e de qualidades”.
65. Conclui Büchner: “A secreção do fígado, dos rins, se
realiza sem o sabermos, independentemente da atividade superior dos nervos; ela
produz uma matéria palpável. A atividade do cérebro não pode existir sem a
consciência completa e não segrega substâncias, porém forças. Todas as funções
vegetativas, a respiração, a pulsação do coração, a digestão, a secreção dos
órgãos excretores se verificam tanto no sono como em estado de vigília; mas as
manifestações da vida se suspendem no momento em que o cérebro, sob a
influência de uma circulação mais lenta, fica mergulhado no sono.”
66. Como vemos, para Büchner o pensamento não é uma
secreção; provém de um conjunto de forças diversas que formam unidade; é uma
resultante; mas uma resultante de quê? Será do conjunto do cérebro ou somente
de certas partes? Poderá algo invisível e imponderável, como o pensamento, ser
produzido por diferentes órgãos que se reúnem para um efeito comum? Ele nada
nos diz, nem temos necessidade de explicação para perceber que essa maneira de
encarar o pensamento é ainda errônea. Büchner reconhece que o pensamento é
imaterial; perguntamos, agora, como poderia ser produzido pelo cérebro, que só se
compõe de matéria?
67. Abordemos mais de perto o assunto e veremos que, de
qualquer maneira que o encaremos, é impossível supor que o cérebro segregue o
pensamento, ou que este dele se desprenda, como a eletricidade dos corpos que a
contém. É evidente, averiguado, incontestável, que o trabalho cerebral
determina uma elevação de temperatura no cérebro. Produz-se uma oxidação das
células, que se pode medir, como fez Schiff, operando sobre cães ou sobre o
homem; como o atestam as experiências de Broca, em estudantes de medicina; ou,
enfim, as de Bayson, que pesava os sulfatos e os fosfatos que entravam em seu
corpo pela alimentação, para demonstrar que a quantidade dos sais, rejeitada
pelas excreções, aumentava de maneira sensível, após um trabalho cerebral.
68. Como podem estas experiências, de que os materialistas
têm pretendido fazer um argumento, infirmar a existência da alma? Elas
demonstram, simplesmente, que quando o cérebro trabalha, o sangue aí aflui e
determina uns movimentos moleculares, que se traduzem materialmente por ações
químicas. Acreditar que o pensamento seja o produto dessas reações seria erro
grave, porque, se o cérebro segrega o pensamento, é preciso explicar a natureza
e o resultado dessa secreção.
69. Uma das faculdades da alma que mais têm chamado a
atenção dos filósofos é a memória. Faculdade misteriosa essa, que reflete e
conserva os acidentes, as formas e as modificações do pensamento, do espaço e
do tempo; na ausência dos sentidos e longe da impressão dos agentes externos,
ela representa essa sucessão de ideias, de imagens e de acontecimentos já
desaparecidos, já caídos no nada. Ela os ressuscita espiritualmente, tais como
o cérebro os sentiu, a consciência os percebeu e formou.
70. Para explicar-lhe o mecanismo, Aristóteles admite que
as impressões exteriores se gravam no espírito, quase pela forma por que se
reproduz uma letra, colocando-se um sinete sobre a cera. Descartes crê também
que essa faculdade provém dos vestígios que deixam em nós as impressões dos
sentidos ou as modificações do pensamento. Adotemos a maneira de ver desses
grandes homens e indaguemos como será possível conciliá-la com os dados que
Moleschott nos fornece sobre a natureza do princípio pensante.
71. O sábio químico afirma, em magnífico capítulo, que um movimento
incessante da matéria, que transformações maravilhosas e múltiplas se executam
no interior de nosso corpo, e, apoiando-se nos trabalhos de Thompson, de
Vierodt e de Lehumann, os quais, por sua vez, tinham por base os de Cuvier e
Flourens, declara que “os fatos justificam plenamente a suposição de que o
corpo renova a maior parte de sua substância em um lapso de vinte a trinta
dias”. E alhures diz mais: “O ar que respiramos muda a cada instante a
composição do cérebro e dos nervos.”
72. Se isto é verdade, se somos uma nova entidade de trinta
em trinta dias, se todas as moléculas que compõem nosso ser entram no turbilhão
vital, como conservamos, ainda, na idade madura, a lembrança de atos que se
passaram em nossa mocidade? Como explicará Moleschott que nos conservemos
sempre os mesmos, apesar desse mutações?
73. É incontestável que possuímos a invencível certeza de
ser sempre idênticos; mesmo quando envelhecemos, sabemos que a essência de nós
mesmos não muda. Em meio às vicissitudes da existência, nossas faculdades podem
aumentar ou obliterar-se, nossos gostos variar ao infinito e nossa conduta
apresentar as mais singulares contradições; estamos certos, porém, de que
conservamos o mesmo ser; temos consciência de que outro não tomou nosso lugar
e, entretanto, todos os elementos de nosso corpo foram renovados muitas vezes.
Nem um átomo, do que o formava há dez anos, subsiste nele presentemente. Como
se mantém, então, em nós a memória dos acontecimentos passados?
74. Respondem os espiritualistas que existe em nós um
princípio que não muda e cuja natureza indivisível não está, como a matéria,
submetida à destruição. É a alma que conserva a lembrança dos fatos, as
conquistas da inteligência e as virtudes adquiridas por incessante luta contra
as paixões.
75. Não podemos admitir as teorias materialistas, porque
elas tendem simplesmente a suprimir a responsabilidade dos atos. Se não somos,
com efeito, senão uma associação de moléculas, sem cessar renovadas, se as
nossas faculdades são apenas a tradução exata do desenvolvimento que o acaso
daria a certas partes do cérebro, com que direito poderia o homem prevalecer-se
de suas qualidades e por que se condenaria um malfeitor, desde que sua
inclinação para o crime dependeria de certa disposição orgânica que ele não
pode modificar?
76. Os combates sustentados contra os impulsos que nos
arrastam para o mal indicam que há em nós uma força consciente dirigida pelas
leis da moral. Essas lutas interiores revelam a ação da vontade, a despeito de
todos os sofismas com que se pretende estabelecer que ela é quimérica. Não
somos senhores sempre, é verdade, de dominar as nossas sensações; elas se nos
impõem, muitas vezes, com energia: um espetáculo sensibilizador enche-nos de
doce emoção; provoca a nossa revolta a vista de uma injustiça; encanta-nos uma
harmonia suave; mas essas impressões tão diversas são bem diferentes da
vontade, que é caráter mais íntimo do eu e da personalidade humana.
77. Quando estamos em face de um ato a realizar, ponderamos
os motivos que nos podem dirigir; faz-se ouvir a voz do interesse em oposição à
do dever e o que constitui o mérito é o poder que temos de escolher entre os
dois móveis. Por sermos livres é que somos responsáveis; esta grande verdade
está tão firmada na consciência universal que nunca se viu punir um louco por
ter cometido um crime.
78. O livre-arbítrio não é uma ilusão. É ele que dá ao
homem honesto a força de preferir a morte à infração das leis; é ele que impele
os grandes corações a devotamentos heroicos; e se o homem não passasse de um
joguete cego das forças físico-químicas, seria preciso despedirmo-nos de todos
os nobres sentimentos, de todas as aspirações generosas!
79. Tentaram provar, comparando-se o peso de grande número
de cérebros humanos, que a inteligência mais desenvolvida correspondia sempre a
um encéfalo mais pesado. Estatísticas numerosas foram estabelecidas, mas até
agora os resultados não são bastante precisos para permitir que se formule uma
lei.
80. Vê-se, é verdade, que, à medida que nos aproximamos das
raças inferiores, a capacidade craniana diminui. Nestes últimos tempos,
Bischof, Nicolucci, Hervé, Broca e outros fizeram pesquisas muito curiosas a
esse respeito, mas, tanto como seus predecessores, não puderam deduzir uma
regra dos casos numerosos que observaram; viram-se idiotas com o volume do
cérebro tão considerável quanto o de pessoas que gozavam da integridade de suas
faculdades intelectuais.
81. Nesta espécie de pesquisa é preciso não confundir o
órgão com a função. Se vemos que certas partes do corpo crescem mais que outras,
é que elas trabalham mais. Sabe-se que os ferreiros têm o braço direito mais
forte que o esquerdo, porque é com aquele que manejam o martelo, assim como os
torneiros têm a perna esquerda mais volumosa que a direita, porque é a de que
se servem constantemente. Concluir-se-á que estes homens são ferreiros ou
torneiros porque seus membros se acham mais desenvolvidos?
82. O raciocínio é o mesmo para com o cérebro. Se, em
certos casos, se observa uma correlação entre seu volume e uma grande atividade
intelectual, prova isto tão-só que o espírito atua sobre ele com intensidade.
Disse excelentemente Hervé: “O encéfalo cresce em proporção à atividade
funcional de que é a sede. É essa uma lei que se aplica a todos os órgãos, em
toda a série animal; ora, qual é a atividade funcional do cérebro? A
intelectual e a moral.” O peso e o volume do cérebro nada têm, portanto, de
comum com a existência da alma e não podem invalidá-la.
83. Diremos, em resumo, que do estudo dos fatos ressalta a
certeza de que possuímos um princípio pensante, independente da matéria, que
não está submetido, como esta, às transformações da vida, e no qual reside a
memória.
84. Surpreende-nos ver como os materialistas se extraviam
quando abandonam o sólido terreno da experiência e se aventuram, guiados por
hipóteses, no domínio filosófico. É que não querem admitir senão o que é
visível, tangível, que se pode medir. Nada teríamos que alegar contra esse
método, se dele se servissem sempre; mas o que não é justo é que só o apliquem
aos fenômenos psíquicos. Broussais dizia: “Dissequei muitos cadáveres, mas
nunca encontrei a alma.” Entretanto admitia a vida e as ciências naturais que
só repousam sobre entidades.
85. Escreveu Langel: “A Química contenta-se com palavras,
todas as vezes que lhe é impossível penetrar a essência mesma dos fenômenos. De
que fala ela sem cessar? De afinidade. Não é isso uma força hipotética, uma
entidade tão pouco tangível como a vida e a alma? A Química deixa à Fisiologia
a ideia da vida e recusa ocupar-se com ela. Mas a ideia em torno da qual a
Química se desenvolve tem alguma coisa de mais real? Essa ideia é muitas vezes
inapreensível, não só em sua essência senão ainda em seus efeitos. Pode-se, por
exemplo, meditar um instante nas leis de Berthollet, sem compreender que
estamos em face de um mistério impenetrável? Nas experiências que lhe serviram
de fundamento as reações químicas são conduzidas em condições puramente
estáticas e independentes das afinidades propriamente ditas; mas no fenômeno de
uma combinação, nessa atração que precipita um para os outros átomos que se
procuram, que se juntam, escapando aos compostos que os aprisionavam, não há
com que confundir o espírito? Por mim, penso que quanto mais se estudam as
ciências em sua metafísica, mais se acentua a convicção de que esta nada tem de
inconciliável com a filosofia mais idealista. As ciências analisam as reações,
tomam as medidas, descobrem as leis que regulam o mundo fenomenal; mas não há
nenhum problema, por humilde que seja, que não as coloque em face de duas
ideias sobre as quais o método experimental não tem nenhuma inferência: em 1º
lugar, a essência da substância modificada pelos fenômenos; em 2º lugar, a
força que provoca essas modificações. Só conhecemos, só vemos o exterior, as
aparências: a verdadeira realidade, a realidade substancial e a causa nos
escapam.”
86. Não podemos terminar melhor esta revista do que citando
as seguintes palavras do ilustre fisiologista Claude Bernard: “A matéria,
qualquer que seja, é sempre destituída de espontaneidade e nada provoca; só faz
exprimir por suas propriedades a ideia de quem criou a máquina que funciona. De
sorte que a matéria organizada do cérebro, que manifesta fenômenos de
sensibilidade e de inteligência próprios ao ser vivo, não tem, do pensamento e
dos fenômenos que ela manifesta, mais consciência do que a matéria bruta teria
de uma máquina inerte, de um relógio, por exemplo, que não possui consciência
dos movimentos que manifesta ou da hora que indica; assim, também, os
caracteres de impressão e o papel não têm consciência das ideias que
reproduzem. Assegurar que o cérebro segrega o pensamento, seria o mesmo dizer
que o relógio segrega a hora ou a ideia do tempo. É preciso não supor que foi a
matéria quem criou a lei de ordem e de sucessão; seria isso cair no erro
grosseiro dos materialistas.”
87. Saint-Simon prestou um verdadeiro serviço ao espírito
humano, mostrando, com sagacidade, que se deve conceder à alma maior
importância que aquela que lhe deram os filósofos do século XVIII. Fourier,
apesar do sensualismo de sua época, acreditava na alma e na sua imortalidade.
88. Afora esses dois grandes homens, existe uma plêiade de
pensadores de escol, como Pierre Leroux, Jean Raynaud, Lamennais e outros, que
reergueram brilhantemente o estandarte espiritualista.
89. Acreditava-se que a vitória lhes estava definitivamente
assegurada, quando se revelou, entre os discípulos de Saint-Simon, um filósofo
de primeira ordem - Augusto Comte, que fundou um sistema denominado
positivismo, que teve o mérito de opor à imaginação, realmente muito errante
dos seus predecessores, as frias e rígidas doutrinas da tradição baconiana.
90. Comte procurou reanimar o sensualismo, aplicando-lhe a
ideia do progresso, mas faliu em sua tentativa, e foi forçado, depois de ter
querido explicar tudo pela experiência e pela observação, a reconhecer que
existe em nós uma faculdade: o sentimento, que não pode ser ignorado
impunemente. Acabou por inventar uma espécie de religião que se perdia nas
nuvens de um misticismo incompreensível. Era, segundo Huxley, “um catolicismo a
que faltava o cristianismo”. Mas seus discípulos não o acompanharam nessa
estrada; os dissidentes caíram no excesso oposto e são agora verdadeiros
materialistas, se bem que disto pretendam escusar-se.
91. Um dos mais ilustres representantes do Positivismo é
Littré. Durante toda a sua vida, esse trabalhador infatigável defendeu a nova
concepção, expurgando-a daquilo que seu vigoroso espírito achava inútil ou
supérfluo. Foram estas supressões que o determinaram a separar-se de Augusto
Comte e a reduzir as doutrinas de seu mestre ao que elas tinham de
verdadeiramente útil. Mas acentua as tendências materialistas, que o
Positivismo contém em gérmen, embora pretenda ficar neutro entre os dois
sistemas que disputam a conquista dos espíritos: o espiritualismo e o
materialismo.
Respostas às
questões preliminares
A. Que
faculdade da alma mais tem aguçado a atenção dos filósofos?
Trata-se da memória, essa faculdade misteriosa que reflete
e conserva os acidentes, as formas e as modificações do pensamento, do espaço e
do tempo. Na ausência dos sentidos e longe da impressão dos agentes externos,
ela representa essa sucessão de ideias, de imagens e de acontecimentos já
desaparecidos, já caídos no nada. Ela os ressuscita espiritualmente, tais como
o cérebro os sentiu, a consciência os percebeu e formou. (O Espiritismo perante a Ciência, Primeira Parte, Cap. I.)
B. O
livre-arbítrio existe realmente ou não passa de uma ilusão?
O livre-arbítrio não é uma ilusão. Ele existe realmente e é
ele que dá ao homem honesto a força de preferir a morte à infração das leis; é
ele que impele os grandes corações a devotamentos heroicos. Se o homem não
passasse de um joguete cego das forças físico-químicas, seria preciso
despedirmo-nos de todos os nobres sentimentos, de todas as aspirações
generosas! (Obra citada, Primeira Parte, Cap. I.)
C. O
Positivismo contém tendências materialistas?
Sim. Mesmo após as ideias de Littré, que expurgou a
doutrina positivista daquilo que seu vigoroso espírito achava inútil ou
supérfluo, persistem no Positivismo as tendências materialistas, que ele já
continha em gérmen. (Obra citada, Primeira Parte, Cap. II - O materialismo
positivista.)
Observação:
Para acessar a 2ª Parte deste
estudo, publicada na semana passada, clique aqui: https://espiritismo-seculoxxi.blogspot.com/2020/03/o-espiritismoperante-ciencia-gabriel_27.html
Como consultar as matérias deste
blog? Se você não conhece a estrutura deste blog, clique neste link: https://goo.gl/h85Vsc, e verá como utilizá-lo e os vários recursos que ele
nos propicia.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário