O Espiritismo
perante a Ciência
Gabriel Delanne
1ª Parte
Damos início hoje ao estudo do clássico O Espiritismo perante a Ciência, de
Gabriel Delanne, conforme tradução da obra francesa Le Spiritisme devant la Science.
Nosso objetivo é que este estudo possa servir para o leitor
como uma forma de iniciação aos chamados Clássicos do Espiritismo.
Cada parte do estudo compõe-se de:
a) questões preliminares;
b) texto para leitura.
As respostas às questões propostas encontram-se no final do
texto abaixo.
Questões preliminares
A. Que concepção acerca da natureza humana tinham os
antigos?
B. Quais as ideias gerais da escola neoplatônica a respeito
da alma?
C. Que contribuição para a Ciência devemos ao gênio de
Bacon?
Texto para
leitura
1. Desde a mais remota Antiguidade as pesquisas dos
filósofos tiveram por objeto o homem, sua natureza física e intelectual;
poder-se-ia crer que chegaram a algum resultado?
2. Os antigos que tinham tomado por divisa a célebre máxima
“conhece-te a ti mesmo” não se conheciam. Eles imaginavam que o homem fosse
composto de dois elementos distintos: a alma e o corpo. Basearam nessa
dualidade todas as deduções da filosofia, e eis que, em nossa época, uma escola
nova acha que eles se enganaram; que em nós tudo é matéria; que a antiga
entidade qualificada com o nome de alma não existe; e que é preciso abjurar
esse velho erro, filho da ignorância e da superstição.
3. Àqueles que duvidarem da utilidade, para o homem, do
princípio espiritual, podemos dizer que não há assunto mais digno de nossa
atenção, porque nada nos interessa mais do que saber quem somos, para onde
vamos e donde viemos.
4. Seremos o joguete das forças cegas da natureza? Nossa
raça, que apareceu na Terra depois de tantas outras, não será mais que um anel
dessa imensa cadeia de seres que se deve suceder em sua superfície? A morte
dissolverá os elementos constitutivos do nosso corpo para os mergulhar de novo
no cadinho universal, ou conservaremos, depois dessa transformação, uma
individualidade para amar e recordar? Todos esses pontos de interrogação se
erguem diante de nós nas horas de dúvida e de reflexão; eles prendem o espírito
na rede de ideias que suscitam e obrigam o mais indiferente dos homens a
indagar: Existe a alma?
5. Os mais antigos filósofos de que há lembrança na
história acreditavam que éramos duplos e que em nós residia um princípio
inteligente, diretor da máquina humana; eles, porém, não aprofundaram as
condições do seu funcionamento. Em suas pesquisas só se apoiavam em hipóteses;
por isso a teoria dos quatro elementos, que resulta dos seus trabalhos, foi
abandonada. Mas, fato digno de atenção é o de haver Leucipo admitido, para
explicar o mundo sensível, três coisas: o vácuo, os átomos e o movimento, e
vemos hoje essas deduções, em grande parte, adotadas pela ciência
contemporânea.
6. Com Sócrates apareceu o estudo metódico do homem: esse
grande espírito estabeleceu a existência da alma e se baseou em razões de
extrema lógica. Platão, seu discípulo, levou mais longe ainda essa crença. O
filósofo da Academia admitia, a exemplo de Pitágoras, um mundo distinto dos
seres materiais: “o mundo das ideias”. Segundo Platão, a alma conhece as ideias
pela razão; ela as contemplou em uma vida anterior à existência atual. Isso constituiu uma grande novidade, porque
até então limitavam-se todos a crer que a alma era feita ao mesmo tempo que o
corpo. A teoria platônica ensinava que ela já vivera anteriormente.
7. Os estoicos consideravam indiferentemente os prazeres e
as penas. Julgavam imorais todas as ações que se afastavam da lei e do dever.
Esta severidade de princípios foi, durante muitos séculos, a força da
Humanidade e o único dique contraposto às paixões desenfreadas da Antiguidade
pagã.
8. A escola neoplatônica de Alexandria forneceu luminosos
gênios, tais como Orígenes, Porfírio, Jâmblico, que souberam elevar-se até as
mais sublimes concepções da filosofia. Eles admitiam a preexistência da alma e
a necessidade do seu regresso à Terra. Achavam o homem incapaz de adquirir, de
uma só vez, a soma dos conhecimentos que o elevasse a uma condição superior, e
defenderam essa nobre doutrina, com coragem e audácia sem iguais, contra os
sectários do Cristianismo nascente. Próclus foi o último reflexo desse foco
intelectual, e a Humanidade ficou, durante longos séculos, amortalhada sob as
espessas trevas da Idade Média.
9. Naquela época não se duvidava da alma nem da
imortalidade, mas os dogmas da Igreja, que se adaptavam, maravilhosamente, ao
espírito bárbaro das nações atrasadas, tinham-se tornado impotentes em face do
despertar das consciências. A antiga filosofia apoiava-se na razão; a teologia
de São Tomás de Aquino só repousava na fé, e as tentativas de libertação, que
resultavam do divórcio entre a fé e a razão, eram cruelmente punidas.
10. Sendo o progresso uma lei do nosso Globo, devia chegar
o momento em que se efetuaria o acordar das inteligências; foi o que se deu com
Bacon. Este sábio, fatigado com as disputas dos escolásticos que se esgotavam
em discussões estéreis, atraiu as atenções para o estudo da natureza. Criou-se
com ele a ciência indutiva. Bacon recomendou, antes de tudo, a ordem e a
classificação nas pesquisas: quis que a filosofia saísse de seus antigos
limites; abriu um campo novo às investigações e sugeriu a observação como o
mais seguro meio de se chegar à verdade.
11. Morto Bacon, revelou-se, em França, Descartes. Esse
profundo pensador repeliu todos os dados antigos, para adquirir conhecimentos
novos por meio de um método que descobriu. Partindo do princípio: eu penso,
logo existo, Descartes estabelecia a existência e a espiritualidade da alma;
porque, dizia ele, se é possível supor que o corpo não exista, é impossível
negar o pensamento, que se afirma por si próprio, cuja existência se verifica à
medida que ele se exerce. A faculdade de pensar pertence ao indivíduo,
abstração feita dos órgãos do corpo.
12. O método preconizado por esse poderoso renovador
inspirou uma plêiade de grandes homens, entre os quais podemos citar Bossuet,
Fénelon, Mallebranche e Spinoza. Ao mesmo tempo, o impulso baconiano formava
Hobbes, Gassendi e Locke.
13. Segundo Hobbes, não existe outra realidade além do
corpo, outra origem de nossas ideias além da sensação, outro fim na natureza
além da satisfação dos sentidos; e seu modo de ver também levava diretamente à
apologia do despotismo como forma social.
14. Gassendi foi um discípulo de Epicuro, de quem renovou
as doutrinas; mas o mais célebre filósofo dessa época é Locke, que pode ser
encarado, com justa razão, como fundador da psicologia. Ele combateu o sistema
cartesiano das ideias inatas e imprimiu, na Inglaterra e na França, grande
impulso aos estudos filosóficos.
15. Quase na mesma época viveram Bossuet e Fénelon, que
escreveram admiráveis livros sobre Deus e a alma. Em tais obras, cheias da
lógica mais sã, podemo-nos convencer da existência dessas grandes verdades tão
bem postas em relevo por aqueles eminentes espíritos. A profundeza dos
pensamentos é realçada, ainda, por uma linguagem admirável e nunca o espírito
francês ostentou maior clareza, elegância e força como nesses livros imortais.
16. Leibnitz, a mais vasta inteligência produzida nos
tempos modernos, colocou-se entre as duas escolas que se disputavam o império
dos espíritos, entre Locke e Descartes. Refutou o que ambos tinham de absoluto;
mas, com sua morte, seu sistema não tardou a ser abandonado, mesmo na Alemanha,
onde havia sido acolhido com simpatia.
17. Na França, os Enciclopedistas fizeram triunfar as
ideias de Locke; elas conduziram, com Condillac, Helvetius e d'Holbach, a um
materialismo absoluto, que é a consequência inevitável das teorias que,
reduzindo o homem à pura sensação, não podem assinalar-lhe outro fim que não o
da felicidade material.
18. Não tardou, porém, a verificar-se quanto esse método, chamado
empirismo, levava a tristes resultados. Sentiu-se, imperiosamente, a
necessidade de uma reforma e ela foi realizada por Thomas Reid, na Escócia, e
Emmanuel Kant, na Alemanha. Na França, a escola eclética admitiu o racionalismo
de Descartes e brilhou com vivo clarão sustentando a tese espiritualista. As
vozes eloquentes de Jouffroy, Cousin, Villemain demonstraram a existência e a
imaterialidade da alma, com tal evidência, que lhes coube a vitória no terreno
filosófico.
19. A escola materialista operou, porém, uma alteração de
frente. Deixando o domínio da especulação, desceu ao estudo do corpo humano e
pretendeu demonstrar que, em nós, o que pensa, o que sente, o que ama, não é
uma entidade chamada alma, senão o organismo humano, a matéria, que só ela pode
sentir e perceber.
20. Para a massa dos leitores, é difícil tomar pé, em meio
às contradições, aos sistemas e às utopias pregadas pelos maiores espíritos. As
pesquisas metafísicas que se agitam no vazio cansam. Torna-se imperioso o
retorno ao estudo meticuloso dos fatos: daí o êxito dos positivistas.
21. Só podem existir duas suposições quanto à natureza do
princípio pensante: matéria ou espírito; uma sujeita à destruição, o outro
imperecível. Todos os meios termos, por mais sutis que sejam, epicurismo,
espinosismo, panteísmo, sensualismo, idealismo, espiritualismo vêm confundir-se
nestas duas opiniões.
22. “Que importa – disse Foissac – que os epicuristas
admitam uma alma racional formada dos átomos mais polidos e mais perfeitos, se
essa alma morre com os órgãos, ou se, pelo menos, os átomos que a formam se
desagregam e voltam ao estado elementar? Que importa que Spinoza e os
panteístas reconheçam que um Deus vive em mim, que minha alma é uma parcela do
grande todo? Não concebo a alma senão com o caráter de unidade indivisível e a
conservação da individualidade do eu. Se minha alma, depois de ter sentido,
sofrido, pensado, amado, esperado, vai-se perder nesse oceano fabuloso chamado
a alma do Mundo, o eu se dissolve e desaparece: isto é a extinção e a morte de
minhas afeições, de minhas recordações, de minhas esperanças, é o abismo das
consolações desta vida e o verdadeiro nada da alma.”
23. A alternativa, então, é esta: ou com a morte terrestre
todo o ser desaparece e se desagrega, ou dele resta uma emanação, uma
individualidade que conserva o que constituía a personalidade, isto é, a
memória e, como consequência, a responsabilidade.
24. Restringindo-nos ao terreno dos fatos, vamos passar em
revista as objeções que se nos opõem e demonstrar que a alma é uma realidade
que se afirma pelo estudo dos fenômenos do pensamento; que jamais se poderia
confundi-la com o corpo, que ela domina; e que quanto mais se penetra nas
profundezas da fisiologia, tanto mais se revela, luminosa e clara, aos olhos do
pesquisador imparcial, a existência de um princípio pensante.
25. Os mais ilustres representantes das teorias
materialistas foram, na Alemanha, Moleschott e Büchner. Eles reúnem em suas
obras a maior parte dos argumentos que militam em seu favor. Compulsando os
anais da fisiologia, ou sejam, os fenômenos da vida, esperam provar que estão
certos.
26. Examinam minuciosamente todos os elementos que entram
na composição dos corpos organizados, estabelecem com autoridade a grande lei da
equivalência das forças que se traduz nas ações vitais, medem, pesam, analisam
com talento excepcional todas as ações físicas e químicas que se verificam no
corpo humano. Mas se, deixando as ciências exatas, se aventuram no domínio
filosófico, bem se lhes pode recusar o testemunho. Porque eles tentam uma
empresa impossível: querem banir dos conhecimentos humanos todos os fatos que
não caem diretamente sob os sentidos.
27. Na pressa de repelir ideias antigas, não refletem que
admitem causas tão estranhas, entidades científicas tão bizarras como as dos
espiritualistas. Em primeiro lugar, esses sábios que rejeitam a alma, porque
ela é imaterial, admitem a existência de um agente imponderável, invisível e
intangível que se chama vida? Ora, que é, com efeito, a vida? Responde Longet
que é o conjunto das funções que distinguem os corpos organizados dos corpos
inorgânicos.
28. A realidade, porém, é que não avançamos nada sobre o
conhecimento da vida, aceitando essa definição, uma vez que ignoramos qual é a
causa dessas funções. Elas não se executam senão em virtude de uma força que
age constantemente, que se conhece por seus efeitos, mas cuja natureza íntima
permanece sempre um mistério. Que força é essa que anima a matéria, que dirige
as operações tão numerosas e tão complicadas que se passam no interior do
corpo?
29. Nossas máquinas, ainda tão rudimentares, exigem, se as
comparamos ao mais simples vegetal, um cuidado constante para o bom
funcionamento de cada uma de suas partes, uma vigilância contínua para remediar
os acidentes que se podem produzir. Na natureza, ao contrário, tudo se executa
maravilhosamente. As ações mais diversas, as mais dessemelhantes combinam-se
para manter essa harmonia que constitui o ser em bom equilíbrio orgânico. Que é
o que designa a cada substância o posto que ela deve ocupar no organismo? Que é
que repara essa máquina quando ela vem a estragar-se? Em uma palavra, que poder
é esse de que resulta a vida?
30. Para responder a essas perguntas, os fisiologistas
imaginaram uma força que denominaram princípio vital. Desejamos muito acreditar
nessa força, mas faremos observar que esse princípio é invisível, intangível,
imponderável, que não acusa sua presença senão pelos efeitos que manifesta, e
que os espiritualistas estão nas mesmas condições quando falam da alma. Se os
materialistas admitem a vida e nenhum deles a pode negar, nenhuma razão têm
para repelir a existência do princípio pensante do homem.
31. Moleschott publicou uma obra intitulada A circulação da vida, na qual expõe a
nova forma das crenças materialistas. Vamos resumi-la rapidamente, para que se
veja como são desprovidas de justeza suas alegações e por quais sofismas
consegue ele dar às suas deduções uma aparência de lógica.
32. Ele estabelece, como princípio, que não podemos
verificar em nós e em torno de nós senão a matéria; que nada existe sem ela;
que o poder criador reside em seu seio e que pelo seu estudo é que o filósofo
pode tudo explicar. Discorre, complacentemente, sobre as provas que a ciência
forneceu a respeito dessa grande frase de Lavoisier: “nada se cria, nada se
perde”. A balança demonstra que, em suas transformações, os corpos se
decompõem, mas os átomos que os constituem podem reencontrar-se integralmente
em outras combinações. Ou, dito por outra forma, não se cria matéria. O corpo
do homem rejeita o que nutre a planta; a planta transforma o ar, que nutre o
animal; o animal nutre o homem, e os seus resíduos, levados pelo ar à
superfície da terra vegetal, renovam e entretêm a vida das plantas. Todos os
mundos: vegetais, minerais, animais, se unem, se penetram, se confundem e
transmitem a vida por um movimento que é dado ao homem verificar e compreender.
Eis por que – diz ele – “a circulação da matéria é a alma do Mundo”.
33. Essa matéria, que nos aparece sob aspectos tão
diversos, que se transforma em tão múltiplos avatares, é, entretanto, sempre a
mesma. Como essência é imutável, eterna. Moleschott faz notar que é ela
inseparável de uma de suas propriedades: a força. Não concebe uma sem a outra.
Não pode admitir que a força exista independente da matéria, ou vice-versa. Daí
conclui que as forças designadas sob os nomes de Deus, alma, vontade,
pensamento etc. são propriedades da matéria. Segundo ele, acreditar que essas
forças possam ter uma existência real é cair num erro ridículo. Ouçamo-lo:
“Seria uma ideia absolutamente sem significação a de que uma força pairasse
acima da matéria e pudesse, à vontade, casar-se com ela. As propriedades do
azoto, do carbono, do hidrogênio, do oxigênio, do enxofre, do fósforo, residem
em si de toda a eternidade.”
34. Em face disso, entende Moleschott, a força vital, a
ideia diretriz, a alma não passam de modificações da matéria, de alguns dos
seus aspectos particulares. A matéria, por toda parte e sempre, sob infinita
variedade de formas, não é mais que a combinação físico-química dos elementos.
Tais são, em suas grandes linhas, as primeiras afirmações de Moleschott. Serão
exatas? É o que verificaremos.
Respostas às
questões preliminares
A. Que
concepção acerca da natureza humana tinham os antigos?
Eles imaginavam que o homem fosse composto de dois
elementos distintos: a alma e o corpo, e basearam assim, nessa dualidade, todas
as deduções da filosofia. (O Espiritismo
perante a Ciência, Primeira Parte, Cap. I.)
B. Quais as
ideias gerais da escola neoplatônica a respeito da alma?
Os neoplatônicos admitiam a preexistência da alma e a
necessidade do seu regresso à Terra. Achavam o homem incapaz de adquirir, de
uma só vez, a soma dos conhecimentos que o elevasse a uma condição superior, e
defenderam essa nobre doutrina, com coragem e audácia sem iguais, contra os
sectários do Cristianismo nascente. (Obra citada, Primeira Parte, Cap. I.)
C. Que
contribuição para a Ciência devemos ao gênio de Bacon?
Bacon, fatigado com as disputas dos escolásticos que se
esgotavam em discussões estéreis, atraiu as atenções para o estudo da natureza.
Criou-se com ele a ciência indutiva. Bacon recomendou, antes de tudo, a ordem e
a classificação nas pesquisas: quis que a filosofia saísse de seus antigos
limites; abriu um campo novo às investigações e sugeriu a observação como o
mais seguro meio de se chegar à verdade. (Obra citada, Primeira Parte, Cap. I.)
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