sábado, 18 de setembro de 2021

 



Duas histórias: uma para rir, outra para chorar

 

JORGE LEITE DE OLIVEIRA

jojorgeleite@gmail.com

De Brasília-DF

             

Recentemente, no dia 9 de setembro de 2021, fui ao salão de beleza onde corto meus cabelos ondulados: uns dum lado, outros doutro... Após sentar-me, enquanto aguardava a chegada de nossa cabeleireira, que chegaria cinco minutos depois, fiquei ouvindo uma senhora conversar com a filha da dona do salão, que pintava os cabelos da senhora.

De início, a dona, máscara no rosto, dizia assuntos relacionados a um aluguel caro, no valor de doze mil reais. Em seguida, passou a comentar temas relacionados à área da saúde pública onde trabalha. Então, reclamou de uma norma pública existente há anos, que limitava a doze afastamentos médicos por ano aos servidores concursados, e citou toda a dificuldade da colega do hospital, que mora afastada do centro de Brasília, para homologar uma dispensa médica. O deslocamento de sua cidade, Santa Maria, para o centro, e a espera para atendimento duram o dia todo. Por isso, justificou a decisão de sua colega em não pedir dispensa médica do serviço, a não ser por longo período.

Depois, quando Selma, minha cabeleireira, já chegara e eu me havia postado em cadeira ao lado da citada cliente, esta passou a falar sobre caso ocorrido com o ex-governador do Distrito Federal chamado Roriz, falecido há vários anos, mas de quem ainda hoje se ouvem "causos" pitorescos. O que ela disse e nos fez sorrir foi o seguinte:

— Você sabia, Selma, que o Roriz era devoto de Santa Maria? Por isso criou essa cidade e batizou-a com esse nome. Até hoje, os lotes que ele deu às famílias do lugar não foram regularizados. Há quanto tempo ele foi governador? E Selma respondeu:

— Já faz mais de vinte anos.

A cliente prosseguiu falando, após concordar comigo que, pelo tempo de uso, os moradores já faziam jus ao direito de usucapião. Detalhe: não existe usucapião de bem público.

— Pois é — continuou —, ele adorava tanto a santa, que resolveu dar o nome à cidade de Santa Maria. Mas algum tempo depois disso, ele desceu lá de helicóptero com a santa e a hélice do helicóptero cortou a cabeça dela. Ouvindo isso, quase caí da cadeira... Selma e a filha, que pintava o cabelo de nossa narradora, acorreram ao seu auxílio, explicando o que de fato havia acontecido:

— Não foi a cabeça da santa que foi cortada, foi a da irmã do governador!

Como eu já conhecia a história, acrescentei:

— Antes fosse a cabeça da imagem da santa... que é de barro!

Com isso, todos concordamos. E a narradora sorriu, um pouco sem graça, no que foi acompanhada...

Dava para perceber, entretanto, no tom da voz da cliente, a ironia e o preconceito contra a crença do folclórico ex-governador de Brasília. A cliente, então, passou a falar de outro assunto, após o riso geral em virtude de sua troca da vítima real, que lastimamos, pela cabeça da imagem. E agora, o assunto era muito, muito sério...

— Na sala de aula da escola em que meu filho estuda, foi matriculado um menino negro. Todos os seus colegas eram brancos, e só ele era negro. Então, meu filho fez amizade com ele, mas seus colegas se afastavam do garoto, que discriminavam. Um dia, a mãe duma menina que estuda na mesma sala me disse: "Você sabia que matricularam um menino preto na sala dos nossos filhos?" Ouvindo isso, fiquei indignada e respondi-lhe: "Ele tem o mesmo direito de estudar ali que nossos filhos; e meu filho é seu amigo. Além disso, o pai desse menino é um rico empresário. Sua situação econômica é muito melhor que a nossa."

Indignado pelo que ouvi, em defesa da dignidade dos negros, falei-lhe que o maior poeta da escola simbolista brasileira era negro, filho de escravos, e chamava-se Cruz e Sousa. A senhora, que nunca houvera falar desse grande poeta, embora dissesse que apreciava poesia, anotou seu nome e disse-me que iria ler seus poemas no Google.

Finalizando sua fala, já não mais tão animada, a senhora disse que o pai do menino negro retirou-o daquela escola, onde apenas o filho dela era seu amigo.

Terminado o corte de meus cabelos, precisei fazer a transferência do pagamento com os olhos baixos. Não só por compaixão, como por tristeza, duas lágrimas insistiam em permanecer em meus olhos.

Mais do que nunca, solidarizo-me com os nossos irmãos afrodescendentes! Mais do que nunca, minha alma manifesta sua indignação contra o preconceito sofrido por eles. Mais do que nunca, reconheço quanto o Brasil, último país a extinguir a escravidão oficial, é devedor de uma dívida moral e material imensa para com essa etnia tão vilipendiada, tão perseguida, tão sofrida.

Ainda hoje, quando assistimos a cenas brutais de espancamento, de trabalho semelhante ao de escravos, em nosso pais, quem é que, em 90 por cento dos casos, é vítima desses abusos? A negra e o negro. Que o Congresso Nacional e a sanção do Presidente da República corrijam a incompleta Lei Áurea e criem nova lei com seu complemento assim:


"Fica decretado que, a partir de agora, nenhum negro ficará segregado, em nenhuma instituição pública ou particular, e que todos os negros sejam tratados com dignidade, respeito e idênticos direitos possuídos pelas pessoas das demais raças e etnias.

Parágrafo único. Nenhuma pessoa negra deixará de possuir casa, lazer, educação nos melhores colégios e emprego com remuneração mínima suficiente a lhe proporcionar boa alimentação, vestuário, e direito à manifestação cultural livre, de ora em diante, que não atente contra os costumes e a legislação vigente.

Revogam-se as disposições em contrário.

Esta lei será regulamentada no prazo de 30 dias.

Brasília, 13 de setembro de 2021."

 

Saravá!

           

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